A relação entre a humanidade e a planta é longa, complexa e multifacetada, atravessando milênios e continentes
Por Carolina Jácomo
Desde sua origem na Ásia Central até sua expansão pela Europa, África e Américas, a planta foi cultivada, utilizada e venerada por suas propriedades únicas, que vão desde a produção de fibras industriais até usos medicinais e rituais. Ao longo da história, cada cultura desenvolveu formas particulares de interagir com a planta, moldando tanto suas práticas quanto suas percepções sociais.
Neste artigo, exploro essa interação histórica, com ênfase na chegada da maconha ao Brasil e no impacto do proibicionismo sobre a planta. Evidências sugerem que sua domesticação começou há mais de 2.500 anos, quando civilizações antigas descobriram o valor de suas fibras resistentes e suas propriedades medicinais. Desde então, a planta se espalhou pelo mundo, assumindo diferentes significados e usos conforme alcançava novas culturas.
Na Europa, a cannabis, especialmente o cânhamo, desempenhou um papel crucial na indústria naval e têxtil. Suas fibras foram utilizadas para confecção de cordas, velas de navio e roupas, desde o Império Romano, até impulsionar as economias marítimas como as da Inglaterra, França, Holanda, Portugal e Espanha em seus empreendimentos coloniais. Em contrapartida, no Oriente, em países como China e Índia, o uso da planta era principalmente medicinal e ritualístico. Na Índia, a cannabis era consumida como parte de cerimônias religiosas e em bebidas como o bhang, enquanto na China, seus extratos medicinais eram documentados em textos médicos antigos, bem como em sua farmacopeia. Na África, o uso fumado da cannabis, especialmente em cachimbos, se popularizou e se manteve uma prática comum até os dias de hoje, com forte conexão com as tradições culturais e religiosas do continente.
A introdução da cannabis no Brasil
A cannabis chegou ao Brasil por duas vias distintas. Primeiro, trazida pelos europeus como cânhamo durante o período colonial. As potências marítimas europeias, como Portugal, usavam a planta principalmente para abastecer suas frotas com cordas e velas, essenciais para a indústria naval e p projeto de expansão colonial. Nos séculos 18 e 19, a Rússia era um dos maiores produtores mundiais de cânhamo, fornecendo grandes quantidades para as demais nações marítimas. As marinhas portuguesa e brasileira dependiam dessa matéria-prima, tanto que o cultivo do cânhamo foi promovido pela Coroa com a distribuição de sementes e guias de cultivo para agricultores brasileiros.
A segunda via se deu com a chegada de africanos escravizados, que trouxeram séculos de conhecimento de uso terapêutico, social e ritualístico da maconha. Embora não haja comprovação histórica de que sementes da planta tenham sido deliberadamente transportadas por eles durante a travessia transatlântica — devido às condições desumanas do tráfico de escravizados —, os africanos trouxeram suas tradições culturais associadas ao consumo da planta. No Brasil, esses costumes, principalmente o uso fumado da cannabis, popularmente chamada de “diamba” ou “pango”, se espalharam em diferentes regiões.
A cannabis na medicina ocidental e sua popularização
A segunda metade do século 19 viu a explosão do uso medicinal da cannabis. Produtos como tinturas e extratos foram amplamente prescritos para tratar uma variedade de doenças. Médicos franceses e ingleses disseminaram na Europa as propriedades medicinais de preparados à base de cannabis e haxixe, e laboratórios exportaram medicamentos à base da planta para todo o mundo, incluindo o Brasil. Aqui, a planta foi comercializada em farmácias sob a forma de preparados como extratos e tinturas, e cigarros, como os famosos Cigarros Índios de Grimault, usados para tratar das molestias das vias respiratórias, desde asma até convulsões infantis. Revistas médicas relataram os resultados benéficos em pacientes que utilizavam tais produtos, tratando comorbidades como histeria, reumatismo, gota, enxaqueca, entre outras.
Foto: Anúncio dos cigarros índios de Grimault & Cia, no Diário do Rio de Janeiro, em 1874.
Proibição e racismo: a criminalização da cannabis no Brasil
Apesar dos inúmeros usos positivos da cannabis, o Brasil foi uma das primeiras nações a criminalizar seu uso. Em 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro promulgou a primeira proibição da planta, medida que foi replicada por outros municípios e províncias de norte a sul do país ainda no século XIX. Essa proibição foi motivada por razões fortemente racistas. A cannabis, quando associada ao uso africano, foi demonizada como uma droga perigosa, enquanto seus usos chancelados pelo saber europeu, através da fibra nas indústrias naval e e têxtil, e na medicina através de preparados, continuaram sendo aceitos e incentivados.
Médicos e intelectuais do início do século XX, como José Rodrigues Dória e Francisco Iglésias, entre outros, fomentaram um pânico moral ao afirmar que a cannabis, utilizada por negros e mestiços, levava à criminalidade, loucura e degradação social. Esses discursos higienistas e racistas foram essenciais para justificar a repressão e marginalização da planta e viabilizar a sua proibição federal no Brasil durante a década de 1930. Ao mesmo tempo, o consumo de “diamba” ou “pango” pelos africanos escravizados e suas comunidades se tornou alvo de constantes perseguições das autoridades, que viam o uso da planta como uma ameaça à ordem social e moral.
A Redescoberta da cannabis na contemporâneidade
Após décadas de repressão e marginalização, a sociedade vive um processo de redescoberta quanto à potência e versatilidade da vulgarmente conhecida maconha. Sua biologia vem sendo amplamente estudada para aplicações no setor industrial, servindo como insumo para a produção de fibras têxteis, celulose, revestimentos automotivos, construção civil, bioplásticos, alimentação, biocombustível, isolamento térmico e acústico, produtos de higiene e beleza, entre outros. Na vertente medicinal, as pesquisas ganham cada vez mais fôlego, devido à comprovada eficácia da cannabis no tratamento de diversas comorbidades, como epilepsia, dores crônicas, ansiedade, depressão, esclerose múltipla, Parkinson, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), glaucoma, distúrbios do sono, doenças inflamatórias intestinais (DII) e até na promoção de qualidade de vida para pacientes em tratamento contra o câncer.
Embora o caminho para a completa descriminalização e legalização da planta ao redor do mundo ainda seja desafiador, as bases dessa transformação já foram lançadas. A cannabis, que ao longo da história foi símbolo de resistência e inovação, continua sendo uma ferramenta poderosa, desafiando normas sociais e promovendo avanços tanto tecnológicos quanto médicos. A trajetória da maconha na história da humanidade, especialmente no Brasil, revela tanto seu potencial quanto às dinâmicas sociais e políticas que distorceram sua percepção pública. Foi uma fibra indispensável durante o período colonial e um medicamento amplamente utilizado. Além disso, fazia parte da cultura africana, sendo reprimida ao ponto de se tornar uma substância proibida. Não há como negar que a cannabis reflete as complexas interações entre cultura, economia e política.
Referências:
MAIA, GUSTAVO. A Maconha no Brasil através da imprensa: cânhamo, cannabis, pango e diamba nos jornais antes da proibição (1808-1932). Editoria Vista Chinesa, Rio de Janeiro, 2023.
23ª aula da XI edição do curso de Cannabis Medicinal na UNIFESP/Movrecam: A Cannabis sativa L. na mídia – Gustavo J. C Maia