Burocracia e retrocessos desafiam o acesso à cannabis no país vizinho
Por Murilo Nicolau
Foto: Divulgação/Mama Cultiva Argentina
Os pacientes argentinos enfrentam uma enorme lentidão no sistema do REPROCANN, um registro nacional que autoriza o cultivo controlado de cannabis para fins medicinais e terapêuticos. Em 2024, a mídia especializada apontou que havia mais de 130 mil processos pendentes de decisão e que a fila de espera levava mais de 10 meses. Ao que tudo indica, o REPROCANN tem sofrido com a redução do número de funcionários públicos envolvidos no projeto, consequência da diminuição do quadro promovida pelo novo governo. Isso tem deixado os pacientes medicinais desamparados, comprometendo seus direitos básicos à saúde e a uma existência digna.
A demora se tornou tão grave que o próprio programa realizou alterações internas, ampliando o prazo de validade dos registros e permitindo que pacientes com autorizações vencidas continuem utilizando-as legalmente, a fim de garantir a segurança da população nesse período. A regulação que permitiu que associações realizassem o cultivo em nome dos pacientes, denominada “cultivo em rede”, só foi implementada em 2022, cinco anos após a promulgação do REPROCANN. Além disso, diversas ações judiciais foram movidas contra tentativas do governo federal de reduzir o alcance do programa.
Diante dessa demanda, diversas províncias têm estudado a implementação de programas regionais de acesso à cannabis. Segundo levantamento do jornal O Globo, a porcentagem de argentinos que apoiam a legalização da maconha medicinal e do uso adulto está acima da média global. Na Argentina, a Suprema Corte concluiu, em 2009, o julgamento que declarou inconstitucional o dispositivo legal que criminalizava o porte de pequenas quantidades de drogas para consumo pessoal.
No entanto, como demonstrado no julgamento do Supremo Tribunal Federal brasileiro, a descriminalização do porte de maconha não significa, por si só, a regulamentação do mercado. Sem uma regulação eficaz, as barreiras ao acesso continuam intransponíveis para a maioria da população. Mesmo aqueles que conseguem obter autorização ainda enfrentam problemas como a indisponibilidade de formatos específicos de tratamento e os altos custos, o que resulta na elitização do acesso à planta. Assim, os desafios para o acesso legal à cannabis na Argentina seguem significativos, impulsionando o debate sobre os REPROCANNs provinciais. Além de garantir o acesso aos tratamentos necessários, esses programas representam uma nova fonte de receita para os governos locais e impulsionam as economias regionais, que sofrem com a inflação e os cortes de gastos estatais.
A situação se agravou ainda mais em fevereiro, quando a Ministra da Segurança do governo argentino anunciou que “dariam baixa” em todas as licenças do REPROCANN, supostamente para reiniciar o programa de maneira mais restritiva, sob a justificativa de que haveria desvio de finalidade nos cultivos autorizados para abastecimento do mercado ilegal. O argumento do desvio de finalidade não é novo no mundo da cannabis e já foi utilizado pela ANVISA em 2023 ao proibir a importação de flores in natura, alegando risco de desvio desses produtos para fins recreativos. À época, essa decisão foi amplamente questionada por desrespeitar os direitos de pacientes que já utilizavam esse formato de tratamento, gerando uma enxurrada de ações judiciais contra a agência reguladora.
Na Argentina, a movimentação do governo contra o REPROCANN pode ter um motivo específico: o prazo para que ONGs se registrem no programa e se habilitem para o cultivo em rede termina em 20 de fevereiro. É provável, no entanto, que o plano de cancelar os registros do REPROCANN não tenha o efeito desejado pelo governo. Como diz o ditado jurídico: “Ainda existem juízes em Berlim” – uma referência a um cidadão que desafiou um rei autoritário confiando na justiça para impedir abusos de poder. O mesmo princípio pode se aplicar à Argentina, onde o Judiciário poderá intervir para proteger os direitos dos pacientes.