Por Erik Torquato

 

maconha

Foto: Reprodução Metrópoles / EPA/ABIR SULTAN ISRAEL OUT

 

Se você desse trezentos passos em frente, onde você chegaria neste momento? Trezentos passos correspondem a cerca de duzentos metros, a distância aproximada de duas quadras. A partir de sua casa, chegaria a uma padaria? A uma farmácia? Sairia de sua comunidade? Conseguiria sair de seu condomínio ou atravessar sua extensa propriedade rural, se for o caso? Com trezentos passos, estaria na metade de algum destino? Com trezentos passos, chegaria a um lugar seguro?

Com esta provocação inicio reflexão sobre histórico de Habeas Corpus para cultivo de maconha para fins medicinais no Brasil. Não sei estimar com precisão, mas do que dizem, temos hoje cerca de 300 decisões judiciais pela concessão de salvo-conduto a pacientes que fazem da maconha plantada em seus quintais instrumento de cura e tratamento. São cerca de trezentos passos dados em frente, trôpegos de início e agora um pouco mais firmes, pela luta pela liberdade de corpos e da planta.

Temos a impressão que o conjunto de decisões favoráveis ao cultivo com fins medicinais já foi longe e é caminho pavimentado. Porém, temos que pensar qual o cenário inicial desta caminhada. Há pouco mais de cinco anos não havia qualquer perspectiva real de uma pessoa plantar legalmente maconha no Brasil. Com a primeira decisão positiva, iniciamos a saída de um cativeiro insalubre, numa ruela sem luz de um lugar ermo. Sem brilho das estrelas, tateando o chão enlameado, é que foi dado o primeiro passo, justo e legítimo, por uma realidade melhor. Num cenário tenebroso, muitas outras pegadas vieram, dados com muita coragem por quem sabia que voltar atrás significaria desistir da vida – e aqui faço menção especial às primeiras mães que decidiram confrontar leis injustas em defesa de suas filhas e filhos.

 

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Com pés um pouco mais firmados no caminho, foram sendo alcançadas mais e mais decisões, uma a uma, somando num trajeto ainda dominado pela escuridão. Escuridão formada tanto por obscurantismo científico quanto por preconceito arraigado numa sociedade que prefere ver uma pessoa sofrer do que apoiar a busca por sua saúde, por puro ódio de uma planta natural.

Somando rastros nesta história, outras boas decisões vêm sendo alcançadas dia após dia. Com a abertura de jurisprudência minimamente favorável, o andar tem sido mais fácil e mais amplo – cada vez mais pessoas têm sido beneficiadas pela Justiça com salvos-condutos, para uma gama cada vez maior de indicações médicas. Isto é uma vitória para todos no Brasil, mas é preciso sempre lembrar que ainda estamos muito perto do ponto de partida, que é aquele lugar sombrio de proibição para todos.

 

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Certo é que o acúmulo de notícias boas sobre decisões favoráveis têm levado à sensação de corrida ganha, levando mais pacientes a buscar o direito de plantar para cuidar da própria saúde. A confiança na jurisprudência até aqui formada também tem levado cada vez mais diferentes colegas da advocacia a impetrar habeas corpus neste sentido. E aí, pela certeza de já ter se livrado por completo do cativeiro da proibição, tem-se ouvido muita opinião contrária a quem clama por cuidado neste caminhar.

“Por que não popularizar o HC? Por que não divulgar modelo para impetração em massa? E se todo mundo entrar junto ao mesmo tempo?” Porque apesar de agora estarmos iluminados por poucas estrelas, ainda é o breu da noite que prevalece. Veja bem, como eu disse, já demos apenas cerca de 300 passos em frente. Já não estamos no mesmo lugar, mas não dá pra dizer que fomos longe. Pensando em impetração em massa faço analogia a ações ajuizadas contra operadoras de celular – certamente a jurisprudência favorável a clientes formaria uma caminhada até a lua e ainda voltaria à Terra. Isto sim é uma jurisprudência consolidada, isto sim é ter a confiança de que a advocacia em massa é trajeto tranquilo a ser adotado.

 

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Temos que lembrar que plantar maconha não é uma banalidade, é crime no Brasil! Temos que considerar que impetrar um Habeas Corpus em favor de um paciente que planta não é meramente tentar algo na justiça “e se não der não deu, o não eu já tenho”. É uma luta a ser levada a sério, batalhada caso a caso, sob o risco de retorno total ao temido lugar de injustiça para todos. E aqui chamo atenção sobre passos tortos, fora do bom caminho, que infelizmente têm recentemente feito pegadas. Não temos como garantir qual será a decisão de um juiz, mas temos como cuidar para não cometer erros já conhecidos. Quem não sabe impetrar HC para cultivo, que não impetre; quem se apavora com a ideia de ter de recorrer de uma negativa, que nem comece; quem não está obstinado pela vitória, que passe longe. Feito tudo isso, nem assim, o bom resultado é garantido.

De igual forma, a seleção de casos para apresentação à Justiça precisa ser feita de forma muito criteriosa. A mídia tem falado em “HCs de fachada” e, se persistirem vindo à tona situações que maculem a imagem da luta, a mentira de que o HC para cultivo é um estratagema para ilegalidades poderá se perpetuar sobre todos. Por essa razão é que todos os envolvidos na caminhada precisam ser sinceros e trabalhar com a verdade.

 

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Erik Torquato é advogado ativista antiproibicionista e integra a Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (REFORMA) – Foto: Erik Torquato/Arquivo pessoal

 

E aqui faço mais um parênteses: sei que nós, advogados que têm trabalhado incessantemente por essa causa, contamos muito com a verdade contada por nossos clientes, pois não temos aparatos de investigação como as autoridades policiais têm. E aí a boa-fé do profissional é sempre presumida e, mesmo assim, podem acontecer situações indesejadas e não previstas por eventual desvio de conduta de alguma das partes envolvidas. De toda forma, independente de eventual repercussão negativa, é importante fazer uma autoavaliação sobre sua participação para aquele resultado e, se for o caso de consciência tranquila, seguir em frente com mais cautela. Citando Fernando Sabino “é fazer de uma queda um passo de dança”, mas prestando mais atenção à música que toca o baile.

Dito tudo isto, reforço: ainda estamos no início de uma caminhada. Quem puder fortalecer, que fortaleça. Quem não puder, que ao menos não seja mais uma pedra de tropeço. Com as pernas cada vez menos bambas, dos trezentos passos à frente e alguns atrás, ainda podemos ver com nitidez a silhueta do lugar tenebroso de onde saímos. Nunca houve uma mãe saudosa acenando um lenço na porta nos desejando uma boa viagem; sempre houve um cativeiro para o qual não queremos voltar.

Em histórico de HC para cultivo de maconha para tratamento de saúde, ainda é noite. Ainda não vimos o sol raiar pra todos, mas essa hora vai chegar. Entre altos e baixos, caminhemos para a aurora que um dia vai coroar o horizonte – aí sim poderemos dizer que fomos longe. Até lá, vamos em frente, com calma, coragem e responsabilidade.

 

Erik Torquato é Advogado criminalista. Co-fundador da RENCA. Membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas – REDE REFORMA. Carioca em São Paulo. Há mais de anos ativista pelo fim da guerra às drogas. (21)97234-1865 / e-mail [email protected]