Por Erik Torquato

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Erik Torquato é advogado criminalista, ativista antiproibicionista e membro da Rede Reforma. Imagem: Reprodução/Cannalize

 

Segregação, o mundo já vivenciou vários episódios dessa violência. Em todos eles o racismo foi o principal combustível propulsor. Ao mesmo tempo, em todos os eventos houve parcela considerável da população que acreditava que, por simplesmente tais medidas serem aprovadas segundo critérios legais de suas épocas, eram justas. Minorias sempre foram segregadas (e aqui não no sentido numérico do termo, mas sim em razão das relações de poder), por força da dominação de grupos hegemônicos.

Mais uma vez, estamos diante de um momento histórico de segregação, de determinar se seguiremos como “iguais, porém separados”: eis o perigo do PL 399/2015, sobre regulamentação da maconha medicinal no Brasil. Com apoio à aprovação do referido projeto, que não conta com qualquer consideração histórica ou social, estaremos a dividir quem poderá ou não lucrar no Brasil ao custo de corpos doentes, sobre o sangue de gente preta.

Hoje, no Brasil, é mais ou menos isso que estamos a presenciar: usuários de maconha, iguais no hábito, separados pela lei; proteção para um lado, criminalização violenta para o outro. Iguais, porém, separados. E aí vem ocorrido o que é praxe: quando segredados se manifestam, ouvem como resposta daqueles que se dizem favoráveis à mesma luta “esperem, não estamos preparados!”

 

Podcast Maconhômetro Entrevista: Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, com Cecília Galício. Ouça agora!

 

Tal como ocorre atualmente, é bom lembrarmos que o alguns países já editaram leis que criaram ambientes de separaçao entre iguais. Tais períodos históricos foram marcados por sangue e violência contra grupos tidos como minoritários. E neste ponto faço menção à África do Sul e o movimento do apartheid iniciado no século XV. Uma minoria branca segregou a maioria negra, violentamente. Foram criadas leis que garantiam privilégios para os brancos de maneira que os negros ficaram excluídos de até 90% do território nacional. Tal regime só terminou depois que os negros iniciaram um movimento de desobediência civil já em meados do século XX. Durante o apartheid os negros eram tratados como inferiores pelo próprio Estado, com serviços públicos de baixa qualidade, residindo em áreas sem infra-estrutura e sofrendo todo tipo de perseguição racial.

Vale também rememorar que nos EUA o massacre de negros e a guerra de secessão iniciou-se com o fim formal da escravidão. A 13ª Emenda que aboliu à escravidão incomodou tanto aos sulistas que foi necessário que viesse a 14ª Emenda para reafirmar a igualdade entre negros e brancos. Porém, os sulistas insatisfeitos iniciaram um movimento conhecido como secessão. A ideia de “iguais porém separados” foi muito defendida durante o tempo, se evidenciando até poucos anos atrás, quando havia escolas para negros, bancos de ônibus para negros, bebedouros para negros. Isto ocorreu até que uma senhora negra, cem anos depois da declaração de igualdade racial, resolveu desobeder a ordem de separação ao sentar onde bem quis em um ônibus. Tal fato deu origem a um dos maiores moviementos de resistência negra da história, que como resposta do Estado, ouviam um sonoro “esperem, ainda não estamos preparados para a igualdade plena”. Anos depois, a nação da liberdade continua não sendo a da iguadade. Tanto é que a morte de um homem negro, George Floyd, reiniciou a velha chama da revolta.

Esse curto apanhado histórico mostra o quanto o povo negro sofre com anos de perseguição e escravidão pautadas em leis formalmente aprovadas, em muitos lugares pelo mundo. Aqui no Brasil nossa história foi construída com a força do trabalho escravo, com a exploração de suas vidas em prol do enriquecimento dos senhores de engenho. Estes escravocratas construiram suas riquezas com a manuntenção do controle dos povos negros escravizados. A história se passou, a escravidão foi declarada abolida, os escravos foram declarados livres, mas as dívidas históricas com esses povos, hoje integrados à nossa gente, jamais foi quitada, reparada e tampouco esquecida, sendo certo que os escravocratas ainda continuam com suas riquezas e mantendo seus domínios sobre os poderes constituídos.

 

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As leis do apartheid privilegiavam os brancos e separavam os sul-africanos por raça. Imagem: Getty Images

 

Como ferramenta de contenção social e criminalização do negro no Brasil, o pito do pango (maconha) foi proibido em 1830 no município do Rio de Janeiro. A cultura negra foi criminalizada desde o samba até suas religiões. O aparthaid brasileiro foi cada vez mais fortalecido a partir de leis segregacionistas. Não é por acaso que o Brasil mata um negro a cada dois minutos nos dias de hoje, nem é por acaso que o Brasil possui a quarta maior população carcerárea do mundo, sendo ela formada em sua esmagadora maioria por negros. Tampouco é por acaso que o delito que mais prende e mata homens e mulheres pretas é justamente os delitos relacionados à Política de Drogas.

Ardilosamente, hoje dia 20/4, dia mundial pela luta da legalização da maconha, foi apresentado no Congresso Nacional relatório da citada proposta de lei que pretende regulamentar o uso medicinal da maconha no país, por forte lobby farmacêutico internacional. Os parlamentares envolvidos reforçam que ocorreram extensas audiências públicas, mas o que não dizem é que aqueles que sangram pela atual repressão não foram ouvidos em qualquer momento. Não foram ouvidos, por não serem considerados. São pessoas que têm voz, mas permaneceram silenciadas: foi isto que hoje ocorreu mais uma vez, um grande silenciamento e categorização de cidadãos entre os que importam e aqueles que não importam.

Sendo assim, vejo que tal projeto é apenas o reforço do novo modelo de apartheid que se pretende instalar no país, que mantém cidadãos capazes de autodeterminação criminalizados e fortalece a principal ferramenta de genocídio negro no Brasil. Em vez de ser um avanço para a cidadania, o projeto que representa um novo apartheid pretende separar, dividir, segregar os usuários e comerciantes de maconha, colocando aqueles que são pacientes medicinais diagnosticados como clientes de uma indústria farmacêutica e aqueles não diagnosticados, mas também usuários, como alvos de uma industria armamentista e de um sistema criminal inserido na lógica do racismo estrutural. E diante de tudo isso, ainda esperam contar com nosso apoio.

 

Podcast Maconhômetro Debate: O PL 399/2015 e a regulamentação da maconha no Brasil. Ouça agora!

 

Sei que muitos aguardavam este momento por projetos pessoais, mas a meu ver, não há qualquer avanço coletivo a ser comemorado. Se acreditam que iremos nos contentar com a injusta divisão que pretendem nos impor é importante que saibam que: não vamos nos calar, não vamos obedecer. Sem reparação histórica e social, sem liberdade para todos, não haverá submissão. Hoje é dia de luta e continuará sendo. Respeitem nossas vidas, libertem nossos corpos de leis que nos separam!

 

Erik Torquato é Advogado criminalista. Co-fundador da RENCA. Membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas – REDE REFORMA. Carioca em São Paulo. Há mais de anos ativista pelo fim da guerra às drogas. (21)97234-1865 / e-mail [email protected]