Um relato pessoal sobre a folia, drogas e desigualdade
Por Monique Prado
Foto: Monique Prado/Arquivo pessoal
De acordo com informações da IA, “a rebordose como ressaca é um conjunto de sintomas desagradáveis que afetam o bem-estar físico e mental. Pode ser causada pelo consumo excessivo de álcool ou drogas”. A minha durou bastante, talvez tenha acabado quando desfiz a última caixa da mudança na casa nova, mas foi mais mental que física. É um fardo pensar demais. Meu carnaval foi bem diferente, não pude curtir todos os dias (ai,ai, a maternidade), mas o que vivi, vivi bem. Não consigo mais me encher de MD e ficar com vontade de pegar todo mundo. Hoje fico só com vontade de pegar todo mundo mesmo. O amor como uma droga?! Por que não?!
Brincadeiras à parte, ocorre que em alguns momentos precisamos fazer escolhas mais condizentes com nossa realidade, longe de querer ser etarista, espero apenas ser bem compreendida ao dizer que o 30+ cobra e que meu corpinho não aguenta mais a rebordose de dias seguidos. A grana curta já impede a bebida em excesso e no final das contas, a conjuntura me obriga a praticar a redução de danos. Entendi bem quando, em entrevista recente, Gregório Duvivier disse que bebe muito pouco no carnaval e que tem preferido cogumelos a MD, que ele chama de “pó da nossa geração, que deixa as pessoas meio chatas”.
Bom, não podemos esquecer que o que sentimos ao usar entorpecentes sempre é resultado de uma combinação tripla: O set, o setting e a substância. O que significa que o seu estado emocional, o contexto (ambiente), e a substância utilizada são a interação responsável pelo efeito que você vai sentir ao consumir uma droga. Em se tratando do carnaval, que belo e purpurinado contexto, ein?! Mas nem tudo são flores e cores, há sempre riscos envolvidos ao se alterar a consciência, ainda mais em contextos em que o poliuso é adotado, você está em meio a multidões e sob o sol escaldante com pouco acesso a água (alô, crise climática!). Por isso a importância de se espalhar a palavra da redução de danos aos quatro cantos, entre eles, o Planta na Mente, onde o Coletivo Brisa, vinculado a Associação Psicodélica do Brasil, fez a testagem de substâncias de quem estava na concentração do bloco.
Surfa essa onda e desvia da bad
Ocorre que, para mim, o carnaval é uma droga por si só, com uma onda muito forte que de uma só vez conecta gente suada, insalubridade, drogas, música alta (se você tiver sorte), golden shower (relembrar é viver) e línguas ansiando por um beijo triplo. Estereótipos de lado, uma das coisas que mais escutei neste carnaval foi que nele “há muitas regras e etiquetas”. Sim, pessoas que odeiam o carnaval, carnaval é coisa séria, carnaval é compromisso e a única época do ano em que consigo acordar 5 horas da manhã por vontade própria, sem reclamar e com medo de me atrasar. Para além de explicar o óbvio a quem não gosta de carnaval, na maioria das vezes essa fala mirava seu alvo em algum gringo sem noção.
Incomodou só a mim o fato de haverem mais gringos reluzentes que pessoas negras em diversos blocos deste Rio de Janeiro tão mestiço?! Ah, os blocos secretos e seus deleites de respiro e segregação… Mas, quem eu quero enganar com essa falsa indignação, afinal, sempre foi assim… os mesmos personagens seguem carregando copos de bebidas e desfrutando os prazeres da festa da carne, enquanto outros puxam carroças com produtos para saciar a sede. Sem contar as crianças que se arriscam catando latinhas, como um menino que vi chorar de dor ao cair no chão e cortar a boca, nitidamente querendo o colo de uma mãe que deveria estar em outra batalha pela sobrevivência. O neoliberalismo sempre se atualiza e traduz nessas pequenas perversidades, roubando infâncias de uns e prolongando a de outros.
E daí lembramos da política e da vida traduzidas entre um refrão e outro de baianidade nagô, a cada risada alta e criança exausta acompanhando os pais ambulantes vendendo cervejas em meio a um mar de gente curtindo o bloco passar, enquanto alguém passa um ice para o lado ou mete o dedo num saquinho de procedência duvidosa.
Foto: Monique Prado/Arquivo pessoal
Planta na Mente
Das coisas que mais amo no carnaval é o seu viés político, estético, subversivo e revolucionário. Afinal, quem não percebeu isso não viveu o carnaval direito. E nisso, o bloco Planta manda muito bem, suas paródias, além de divertidas, colocam centenas de foliões para escutar e cantar letras que satirizam e escancaram a hipocrisia do proibicionismo. Fiquei hipnotizada pelas deusas que desfilaram com seus corpos nus tapados por isqueiros pendurados em argolas. Carnaval é alta/baixa costura (essa eu amei). Uma delas com uma máscara de rato. Uma bela ratinha colecionadora de isqueiros.
Lindo ver como a cultura canábica se manifesta em diferentes blocos, ainda que no Planta na mente essa manifestação seja ainda mais viva, o uso de drogas é exaltado em todos. Neste ano, integrantes da Marcha da Maconha levaram estandartes com a foto de personalidades famosas assumidamente maconheiras ou ao menos simpatizantes. No carnaval de 2025, Rita Lee, Bob Marley, Ludmilla, Lady Gaga e Madonna deram as caras nos estandartes para prestigiar o bloco que exalta a cultura canábica, enquanto divulgavam a data da Marcha deste ano 04/05/2025.
Maconha
Se você pensa que maconha mata
Maconha não te mata não
macoha vem da natureza
Quem mata é o caveirão
Pode me faltar a calma
Semente, o vaso e a lei
Pode me faltar a terra
Boa para plantação
Pode me faltar a seda
Mas isso eu não acho graça
Só não quero que me falte
A danada da Cannabis
Paródia do bloco carioca Planta na Mente
Dos lados bons de brincar o carnaval, o melhor é poder simular e zombar do que te aflige. Perdi a conta de quantas pessoas matei com minha pistola de água. Minha arma só falhou uma vez, já meu olhar foi apenas certeiro, se é que me entendem. E no Planta na Mente, justamente nele, não consegui parar de levantar minha arma para o alto, como se precisasse expressar em forma de performance, brincadeira, protesto, essa angústia que assola meu peito por entender que a proibição da maconha é um dos elos que legitima a chacina nas favelas. Uma planta que pode ser usada tanto como justificativa para matar e prender, quanto para tratar e salvar. Uma planta em meio a uma guerra moral, como me disse meu orientador Paulo Fraga (PPGCSO/UFJF).
Foto: Monique Prado/Arquivo pessoal
Drogas e seus insights
Abstrações à parte, muitos flashes desse carnaval ainda chegam na minha memória, a fantasia de sugador de clitóris que ganhou o concurso de um bloco; a competidora com um nariz enorme grudado na cabeça com cordão e brincos de neosoro (ah, as drogas); as bandeiras da palestina espalhadas que mantinham viva a memória e saudavam a resistência; as mulheres ocupando as ruas com seus corpos livres; os baseados fumados perto da polícia; as amigas cuidando umas das outras; o encontro de gente que se abraçou ao invés de curtir uma foto e se permitiu brincar com estranhos; o cara fantasiado de morte, que nos lembra que tudo aqui é efêmero e que a qualquer momento você pode encontrar uma fileira de cogumelos mágicos passeando por aí ao som de “geladeira velha, máquina de lavar velha…”, enquanto uma moça tenta pescar você com a frase presa em uma vara de pescar: “Estou pescando peixe mas queria estar pescando você”. Como resistir?!
Carnaval é magia, criatividade, escárnio, a desigualdade nua e crua e um convite a refletir e resistir ao que nos aflige no mundo real, não a toa seja tão propício ao uso de drogas, porque sentir prazer, se perder e ter insights também é revolucionário, assim como, pode ser um tipo de fuga do presente ou caminho para a iluminação (a gratiluz que habita em mim, saúda a gratiluz que habita em você).
E sim, para fechar com loló de ouro, digo, chave! Há múltiplas formas de fazer uso de substâncias entorpecentes, inclusive, formas que não a colocam em risco algum. O uso hedonístico, este uso pelo prazer ou pela recreação (para quem preferir), assim como o uso religioso e medicinal, não deve ser passível de punição e nem de patologização. Estejamos atentos e resistindo nestes tempos pós carnavalescos. Afinal, o ano de fato começou e a vida voltou ao “normal”, ao cotidiano, e as roupas do manicômio em que querem nos prender não são meras fantasias. E é na coletividade, no encontro de gente que nos fortalecemos para o que vem por aí!
Marcha da Maconha do RJ
DIA 04/05/2024
Jardim de Alah – Ipanema
14:20 – Concentração
Viva o carnaval e sua forma de hackear o sistema e de ser uma zona autônoma temporária, nas palavras de Hakim Bey, uma “tática sócio-política que cria espaços temporários que escapam às estruturas formais de controle”, o mesmo que as drogas fazem em nossa mente, nos ajudar a soltar as correntes, confrontar, sobreviver e escapar do capitalismo.
Foto: Monique Prado/Arquivo pessoal