Um dia após o país ter parado para ouvir e celebrar a ciência, mesmo imerso na água turva negacionista que nos afoga diariamente, junto os cacos para contar o episódio de quando a ciência não resistiu, e sucumbiu aos desmandos de um governo incapaz e ignóbil.
A história que tenho pra contar tem os mesmos atores, cenário e enredo da vacina, a diferença é que neste caso o obscurantismo prevaleceu em detrimento do progresso da ciência. Pois bem, a fase II do estudo que coordeno com dependentes de crack tratados com canabidiol deveria iniciar no segundo semestre deste ano, após termos cumprido a fase pré clínica, com a publicação do artigo Evaluation of the potential use of cannabidiol in the treatment of cocaine use disorder: A systematic review, e a fase I, com o financiamento da FAPDF, que finalizará neste primeiro semestre.
O recurso para tal viria de uma emenda parlamentar da deputada federal Érika Kokay (PT-DF), obtida com o apoio do deputado distrital Fábio Félix (PSOL-DF), e todas as exigências impostas pela Anvisa – que não são poucas, porém necessárias – havíamos cumprido: tínhamos nova autorização para importar canabidiol, além da já obtida para a fase I, autorização de guarda da substância e para realizar o estudo.
A articulação para viabilizar a execução desta emenda junto ao Ministério da Saúde (MS) começou em fevereiro de 2019 (para quem desconhece o trâmite, o recurso destinado por um parlamentar para algum projeto deve ser apreciado e aprovado pelo Executivo local; no meu caso, o recurso era federal, a UnB é federal e, portanto, o Executivo local correspondente é o Ministério da Saúde). Fiz reunião presencial com assessores da Área Técnica de Saúde Mental e com o Departamento de Ciência e Tecnologia, uma vez que o projeto trata de uma ação de saúde mental com inovação tecnológica (um novo medicamento). A reunião foi um sucesso e todas as recomendações dadas foram incorporadas ao projeto.
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O drama se inicia após a inserção, em março de 2019, do projeto no sistema do Ministério da Saúde. De lá até o antepenúltimo dia do ano, dá se início ao processo que denomino o mais angustiante, sofrido e odioso que vivi ao longo da minha trajetória profissional: foram ao todo 12 diligências emitidas pela área técnica do Ministério, incomum se tratando de projetos fruto de emenda parlamentar e com articulação prévia realizada, e a cada resposta minha para cada diligência, semanas se passavam até que viesse a resposta, com nova diligência emitida e com questionamentos que não se referiam à resposta que eu havia dado.
A cada nova diligência que chegava, se desenhava claramente o objetivo daquilo tudo: fatiar “dúvidas” sobre o projeto e demorar para apreciar minhas repostas era o modo mais legítimo para, deliberadamente, não aprovar um estudo que conflita com a orientação ideológica do pior governo que esta República já teve desde a sua redemocratização.
Para ainda contar com o benefício da dúvida e manter a crença que o órgão máximo da saúde no país zela pelo nome que carrega, fiz uma dezena de ligações, enviei dezenas de mensagens de whatsapp e e-mails a assessores/as, coordenadores/as e diretores/as do Ministério da Saúde, me colocando à disposição para detalhar e explicar o que ainda gerava dúvidas e empacava a aprovação, mesmo se tratando de um estudo que já havia sido aprovado em sua fase I pela principal agência de fomento à pesquisa no Brasil, o CNPq, além da aprovação por dois comitês de ética.
Nada disso foi suficiente, novas diligências chegavam e o tempo ia passando. O que me restava era delegar o caso à Justiça antes que o ano acabasse e junto dele o recurso que asseguraria a continuidade da pesquisa. Foi quando recorri ao advogado Rodrigo Mesquita no início de novembro que, de pronto, pegou o caso e fez o que deveria ser feito, entrou com um mandado de segurança argumentando que a maneira como o MS estava tratando o projeto obstruía e violava o meu direito como pesquisadora, além de ferir a execução de uma emenda parlamentar de caráter impositivo.
A resposta veio e junto dela mais um item para o pacote frustração, a impetrante neste caso deveria ser a UnB, que é a instituição recebedora do recurso. Recorremos com o argumento de que a universidade é onde desenvolvemos nossas pesquisas e a que nos dá condições para tal, mas o pleiteante por recursos e a definição do que pesquisar fica a cargo do professor, numa representação legítima do conceito liberdade de cátedra. Em vão, fomos vencidos também na segunda instância.
No dia 28/12/2020 a história se encerra, aquela típica novela, filme e livro que desde o início você já saca quem morre no final, mas insiste em seguir acompanhando com o desejo de ser surpreendido pelo efeito reviravolta que os melhores roteiristas e diretores nos presenteiam. Mas nada disso aconteceu por aqui; roteirista e diretor são selecionados a partir de suas incapacidades, para não destoar do dirigente máximo do show de horrores.
Recebo, então, neste dia a REPROVAÇÃO para executar a pesquisa, com argumentos infundados e inexistentes no projeto. Ou seja, o recurso destinado por uma parlamentar não irá financiar coisa alguma, não haverá projeto, não haverá nada, ele simplesmente se perdeu. E se o corte de recursos para a pesquisa feito pelo governo federal não era suficiente, ele agora atua para impedir a execução do orçamento de direito do legislativo e na área que é de sua responsabilidade incidir. Deu para entender que projeto de país é esse que querem para nós?
Não queiram saber o que passou e o que ainda passa aqui dentro. A certeza que tenho é que eu caio, mas não enterro; vou demorar um pouco para retomar o fôlego e prosseguir, mas já já eu volto. Vou junto dos meus para recuperar a paz e diminuir o desencanto. Mas uma coisa certa, a tolerância com aqueles que compactuam com esse atraso, com essa coisa que não tem jeito de nominar, ficou em 2020. Agora eu passo por cima.