Após uma década de enrolações e adiamentos, o Supremo Tribunal Federal encarou a pauta e decidiu por maioria pela descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal
Por Ingryd Rodrigues
Finalmente o STF julgou o RE 635.659 e formou maioria pela descriminalização do porte de maconha no Brasil. Foto: Marcha da Maconha/Divulgação
A gente precisa conversar, família. Então, acende o baseado e presta atenção, se você for uma pessoa que faz uso dessa forma, como nossos ancestrais que foram escravizados faziam. Mas, independentemente disso, se você tem curiosidade sobre o assunto, eu também acho que este papo te interessa.
Terça-feira, dia 25 de junho de 2024, foi um dia histórico na luta por uma outra política de drogas e, mais especificamente, pela regulamentação responsável da maconha no Brasil. Pelo menos podemos dizer que, minimamente, houve algum bom senso e uma vitória de demandas históricas do movimento antiproibicionista. Mas foi um avanço tímido e cheio de controvérsias, além de um tanto quanto embaraçoso em vários momentos. A Suprema Corte levou 9 anos para finalizar este julgamento, tem dezenas de assessores altamente gabaritados, milhões em recursos, mas demonstraram muita falta de preparo.
Foi lamentável assistir à incapacidade de certos ministros em desenvolver debates de alto nível sobre um tema tão complexo, controverso e necessário. Esperava-se mais elucidação de pessoas que ocupam cargos tão importantes em nosso país. Tivemos colocações boas, interessantes e até, surpreendentemente, bem fundamentadas nos votos. Mas o teor moralista sempre esteve presente.
O plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, considera que o consumo de drogas ilícitas é uma coisa ruim e que o papel do Estado é evitar o consumo, combater o tráfico e tratar os dependentes. Portanto, em nenhum momento nós estamos legalizando ou dizendo que o consumo de drogas é uma coisa positiva. Pelo contrário. Droga é ruim, nós a condenamos e o Estado deve evitar o consumo. – Luís Roberto Barroso
O Supremo Tribunal Federal entendeu, em sua maioria, pela descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Está todo mundo fazendo confabulações mil, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo como isso vai caminhar, pois há uma diversidade imensa de variáveis tensionando intenções e vontades sobre o assunto. Inclusive um projeto de emenda à constituição que prevê a criminalização dos usuários de todas as substâncias ilícitas em voga e com muitas chances de conseguir avançar uma vez que o parlamento está infestado de conservadores.
Mas vamos ao que ficou consensual entre os prezados, e já começa a valer desde já, pois a ata já foi publicada:
O STF decidiu que ter pequenas quantidades de maconha para uso pessoal – 40 gramas ou 6 pés – continua sendo proibido, mas não é crime. Por isso, no caso analisado, a pessoa condenada pela posse de 3 gramas de maconha para consumo próprio foi absolvida. A decisão se baseia nos direitos à privacidade e à liberdade individual (art. 5º, X, da Constituição). Reconhece, ainda, que tratar o uso de maconha como crime incentiva atividades criminosas associadas ao tráfico, mas não reduz o consumo.
No entanto, itens que indiquem tráfico também serão considerados na abordagem. Há uma contradição a ser apontada logo aqui, pois todo mundo sabe que seis plantas podem produzir bem mais que 40 gramas. Então, como ficará a questão sobre a quantidade de colheita que excede 40 gramas em casa? Não ficou claro, mas pode-se entender que será considerada a análise de contexto neste caso também.
A gente sabe que existem policiais que forjam flagrantes. Mas, é isso… Dificultou um pouco e ao mesmo tempo, admitiu-se que não tem nada demais., Então também cai aquele papinho que o policial sempre fica “é a lei, enquanto tiver na lei tem que cumprir” e pode ser que desestimule a condução à delegacia.
O Tribunal determinou essa modulação até que o Congresso venha a legislar a respeito. Ainda na matéria, o STF reconhece que os estados e municípios possuem competência para legislar de forma mais restritiva considerando as peculiaridades de cada localidade. Isso significa que pode haver autorização para que novas formas de punição sejam previstas por leis estaduais e municipais. Algo que já vem ocorrendo em diversos municípios, com projetos já aprovados e que eram, até ontem, apontados por nós como inconstitucionais, uma vez que municípios e estados não poderiam legislar sobre penas administrativas relacionadas à lei de drogas. Parece que algo mudou nessa seara. Há muito perigo nessa abertura para tratativa, pois pode-se entender que cada município poderá legislar a partir das próprias interpretações as penalidades impostas aos infratores da lei, que forem pegos portando e plantando para uso pessoal.
Há, claro, uma avalanche de memes. Cada estado adaptou sua versão de “os policiais já estão recebendo os novos equipamentos”, com o oficial segurando a balança. Os policiais maconheiros enrustidos devem estar rachando o bico.
Foi dito também que serão incentivadas campanhas “antidrogas” e que deverá ser utilizado um fundo financeiro que está congelado, mas que foi destinado a isso. Mas convenhamos, não existe ser “antidrogas”. A própria palavra é contraditória por si só, a gente utiliza drogas o tempo todo, literalmente tem farmácia que chama drogaria, se interfere no funcionamento natural do organismo, é droga. A questão é que só se aceita legalmente drogas que enriquecem quem já é rico.
Todos os ministros afirmaram que a questão seria caso de saúde pública. Quando falamos que drogas são sobre saúde pública e não segurança pública, saímos da esfera de punir, encarcerar e maltratar quem escolhe ser usuário para uma perspectiva de cuidado e isso também é um avanço, mas já entendemos que não funciona apenas desestimular ou proibir o uso.
É preciso levar conhecimento sobre abordagens que considerem que o uso vai acontecer de qualquer forma e existem maneiras de que isso seja menos prejudicial ao organismo. Hoje em dia, a gente chama de Política de Redução de Danos, orientações de uso, incentivo a hábitos saudáveis, à alimentação mais orgânica, à meditação, a esportes, música, arte e cultura, isso sim transforma a vida de pessoas.
A expectativa é que pessoas presas com pequenas quantidades possam ter sua situação de cárcere reavaliada. Já há uma movimentação do Conselho Nacional de Justiça que fará um mutirão para rever prisões de pessoas pegas com menos de 40g de maconha. Também espera-se que a decisão iniba as punições desiguais entre pessoas pobres e negras e brancas de classe média. Mas o racismo e preconceito continuam fortes e vigorosos no país, o que significa que, por melhor que tenha sido este resultado, ainda é preciso muita luta para que as coisas comecem mesmo a mudar.
No resto do mundo, a decisão de maneira geral, foi vista com muito bons olhos, a imprensa internacional considerou um progresso e houve destaque para o fato de o Brasil ter se tornado o maior país do mundo a ‘dar esse passo’, na direção da descriminalização da maconha e em alguns países. A Forbes até cutucou, disse que estávamos atrasados em relação a outros países da América Latina. Para a narrativa antiproibicionista, podemos esperar que as pessoas tenham tendência a enxergar a maconha como realmente menos nociva e perigosa, o que aproxima a sociedade a considerá-la mais ainda também como opção terapêutica.
Mas, um dos ganhos mais consideráveis foi termos visto a questão racial ocupando um lugar de centralidade dentro do debate jurídico e político. Há alguns anos atrás, esse debate era lateralizado e neste processo de descriminalização teve protagonismo na fundamentação da tese vencedora. Diversos votos se fundamentaram nas injustiças perpetuadas pelo racismo na aplicação da lei de drogas e na consequente criminalização seletiva que tanto denunciamos há anos nas ruas e nas redes. Ainda que tímido, esse avanço foi justificado pelo próprio presidente do STF, Luís Roberto Barroso, como uma decisão para coibir arbitrariedades.
Nós entendemos, a maioria, que é importante fixar a quantidade que distingue porte de consumo pessoal de tráfico para impedir a discriminação, que está documentada em pesquisas que foram aqui reveladas pelo ministro Alexandre. – Luís Roberto Barroso no desfecho do julgamento.
Apesar do passo curto, avançamos uma casa, vencemos uma batalha, e saímos fortalecidos como campo de luta. Uma derrota neste julgamento seria um golpe duríssimo em décadas de construção coletiva da nossa militância por todo o Brasil. Agora vem a reação conservadora, que já trabalha para acelerar a tramitação da PEC 45 na Câmara dos Deputados e tentar reverter a decisão da suprema corte, inserindo na constituição a criminalização do porte de qualquer quantidade de qualquer droga ilícita.
É essencial impulsionar uma tratativa que considere a justiça de transição na regulamentação, ou seja, a prática da reparação social nesses novos parâmetros legais e a participação dos movimentos sociais, de associações, pesquisadores, especialistas e inclusive usuários nessa construção. Que sejamos semeadores deste futuro que queremos, estamos avançando, mas ainda há muito pelo que lutar!