Os desafios para a manutenção das marchas da maconha em meio a ascensão do conservadorismo, da PEC 45 e do julgamento do RE 635.659 no STF
Por Monique Prado
Marcha da Maconha Rio de Janeiro 2024 | Foto: Lara Lima @laralimaf / laralima.com.br
No dia anterior ao ato sempre bate um nervosismo em quem atua na organização das Marchas da Maconha. Sei disso porque estou na construção da Marcha do Rio de Janeiro e porque conheço ativistas de diferentes regiões do país que também sofrem da mesma ansiedade que eu. Nada que um baseado ou dois não resolvam.
São muitos os medos envolvidos. A possibilidade de haver problemas com a polícia, de uma chuva dispersar a galera, do evento flopar e por aí vai. Participei de três marchas neste ano, a de São Paulo, a do Rio de Janeiro e a de Niterói, na região metropolitana do Rio.
A Marcha do Rio de Janeiro ocorreu no dia 19 de maio. O megashow da Madonna em Copacabana e outros acontecimentos, como o Concurso Nacional Unificado (CNU), acabaram nos forçando a abandonar nossa tradição de marchar no primeiro sábado de maio. Como de costume, nossa Marcha entregou muito som de qualidade com a carretonha do baile Claps, comandada pelo DJ e ativista Raoni Mouchoque, e pelo desfile do Planta na Mente, bloco que arrasta uma multidão de foliões no Carnaval carioca. O tempo nublado trouxe uma chuvinha de leve, mas que foi insuficiente para apagar as brasas já acesas. Foi lindo, foi zen, teve muita alegria e fumaça. Quem passou por nós foi presenteado com um aroma de ervas bem finas.
Marcha da Maconha Rio 2024, Bloco Planta na Mente. | Foto: Lara Lima @laralimaf / www.laralima.com.br
Contamos novamente com a presença de uma robusta planta fêmea de maconha que foi levada pela associação Apepi para enfeitar o ato e desmistificar a erva, mas a grande estreia foi a das torcidas organizadas canábicas. Estiveram presentes a RastaFlu, a Ninguém Fuma Como a Gente, a Fire Fogo, a Bota Boldo, a Rasta do Vasco e a Vasconha.
Foi um espetáculo! Mas nem as gigantescas bandeiras das torcidas com as cores rastafari e nem o som das marchinhas e do funk – marcas registradas do Rio – conseguiram atrair um público maior que o do ano anterior. O mesmo aconteceu em Niterói, que ofereceu aos presentes uma bela demonstração do caráter político que essa luta possui. Durante o ato, os organizadores leram os nomes de vítimas da Guerra às Drogas, que segue falhando miseravelmente em acabar com a produção, o comércio e o consumo de substâncias, mas prospera em aumentar as estatísticas de mortes violentas provocadas pela polícia em dias de operação nas favelas. A mãe de um jovem torturado pela polícia também fez um relato impactante, emocionando todos os presentes.
Ainda assim, apesar de todo o esforço dos organizadores, a Marcha foi bem menor se comparada com anos anteriores.
Marcha da Maconha São Paulo
E o que dizer da Marcha de São Paulo? Aaah, SP! Quem nunca escutou a fama da Mega Marcha paulista anda fumando nas rodinhas erradas. Perdi a conta de quantas vezes me emocionei assistindo aos vídeos da multidão que ocupa a Avenida Paulista para lutar pela legalização. Me impressionei com o nível de organização de um ato tão gigantesco, com milhares de pessoas de todo o tipo, de todas as idades, cores, classes sociais e sotaques. Sim, foi a minha primeira de muitas idas à Marcha de SP, e semanas depois ainda sigo impactada pela sua potência.
Marcha da Maconha SP 2024. | Foto: @victormoriyama / victormoriyama.com.br
Encontrei gente do Brasil inteiro pelas alas e cada encontro foi marcado por um sorriso, um abraço apertado e uns bons tragos. E são justamente essas trocas que nos fazem ser parte de um movimento mundial que é revolucionário, apesar de lutar por uma reforma legislativa. Afinal, a Marcha da Maconha é acima de tudo, antiproibicionista, anticapitalista e antirracista. E é nessas trocas que acontecem nas Marchas que nos fortalecemos e renovamos nossas esperanças para conspirar – em meio a muita fumaça – pela legalização que queremos e pela reparação aos que caíram na malha criminal, nos presídios, nas valas e nos cemitérios por conta da proibição.
Na Marcha de SP, a estreia foi do Bloco Planta na Mente, que levou um pouquinho da cultura carnavalesca carioca para a Terra da Garoa. Mas nem eles conseguiram manter as 100 mil pessoas que já ocuparam as ruas em edições anteriores.
E qual é a razão para este esvaziamento? Foi medo de chuva? Foi medo de repressão por conta da PEC 45? Será que as pessoas se acomodaram? Se acovardaram? Será que acham que a regulamentação em curso já é o suficiente? O pequeno número de manifestantes na ala medicinal me trouxe este último questionamento. Afinal, havia poucos pacientes tanto no RJ quanto em SP. Aliás, o perfil majoritário dos frequentadores das Marchas é um dado interessante. Hoje, quem as lota são os jovens que mais sofrem com a proibição, os negros e periféricos. Ao menos é o que o meu olhar captou no eixo RJ-SP, entre andanças, fotos do Instagram e conversas. Parece que, para quem fuma das coberturas, está tudo certo. Como diria Zeca Pagodinho: “É ilegal?!”
Mas independente da classe e da raça, a diminuição da presença de manifestantes em atos me parece ser um desafio que não é restrito à pauta da legalização da maconha e outras drogas. Ainda assim, é muito simbólico presenciar este esvaziamento no ano em que o Congresso nos ameaça com um flashback ditatorial por meio de uma proposta que busca modificar uma cláusula pétrea da Constituição para nos retirar direitos e criminalizar o consumo e o porte de substâncias ilícitas.
Marcha da Maconha SP 2024. | Foto: @victormoriyama / victormoriyama.com.br
O que houve com os maconheiros deste país? É só isso que me pergunto. Hoje assistiremos a mais um capítulo da votação do STF que busca discutir a constitucionalidade do art. 28 da Lei de drogas. Como boa otimista que sou, estou na torcida pela descriminalização do porte para uso pessoal da maconha, afinal, falta apenas um voto para tal desfecho. O que, venhamos e convenhamos, é vergonhoso, como alertou muito bem o Coletivo DAR em uma postagem que afirma que o “STF rasgou a Constituição” ao tratar apenas da maconha, uma vez que o Recurso Extraordinário (RE) Nº 635.659, que deu origem ao julgamento, trata sobre o art. 28 que diferencia o usuário de drogas (no plural, percebam) do traficante atrelado ao art. 33.
Já a PEC 45 segue tramitando a todo o vapor. Já foi aprovada no Senado com um texto que propõe a internação de usuários como dependentes químicos (é ou não é o sonho de todo dono de Comunidade Terapêutica?) e foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Imaginem a perplexidade dos constitucionalistas… Vale lembrar que a relatoria do projeto está com, ninguém mais ninguém menos, que Ricardo Salles. Sim, aquele da boiada, o ex-ministro do Meio Ambiente que é inimigo declarado do Meio Ambiente. Não é necessário ser experimentado em leituras de tarot e bolas de cristal para percebermos que essa PEC será aprovada e irá gerar ainda mais desgaste entre o Congresso e o Judiciário na nossa já tão frágil democracia.
Marcha da Maconha SP 2024. | Foto: @victormoriyama / victormoriyama.com.br
Então, deixo aqui o meu apelo. Vá à Marcha da Maconha da sua cidade, participe, saia do armário e interaja nas redes sociais. Ajude no engajamento e ajude a mostrar a força dessa luta que não é só para fumar maconha. Faça disso um compromisso anual. É por um futuro sem mortes de crianças estampadas nos jornais e sem secas da maconha que marchamos.
Independente do resultado da votação do STF, temos um longo caminho de resistência pela frente e cada pessoa nas ruas faz muita diferença. Não se contente com a descriminalização. Só devemos comemorar quando toda e qualquer pessoa puder plantar quantos pés quiser em seu quintal. E quando todos que precisarem tiverem acesso às suas propriedades medicinais sem ter que deixar de comer para comprar um frasco de óleo.
Vamos seguir a recomendação da Marcha da Maconha de SP e começar a “bolar um futuro sem guerra”. Depende de cada um de nós manter a “chama da revolta acesa”!