Reflexões sobre a descriminalização da maconha e relações sexuais/afetivas
Por Monique Prado
Recentemente recebi uma nota da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PM) comunicando que “a corporação não deve mudar suas práticas em relação aos consumidores de maconha”. De acordo com a nota, os policiais devem continuar agindo como antes da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar esse uso. As abordagens continuarão e os consumidores devem permanecer sendo encaminhados às delegacias caso sejam flagrados fumando ou portando.
No mesmo dia recebi um vídeo onde policiais militares entraram em vagões de um trem no ramal Belford Roxo, no Rio de Janeiro, acompanhados por cães farejadores para encontrar maconha. Além de ter sido informada sobre dois amigos que sofreram uma “dura” da polícia, um deles chegou a ser abordado com um fuzil na cara, no meio da praia de Botafogo, por ter sido pego fumando um baseado. Além do esporro, teve que escutar o policial reclamar sobre a decisão do STF.
Esses fatos e todo o debate que a descriminalização gerou na sociedade, me levaram a refletir sobre mudanças e o tempo de maturação que precisam. Assim como o enfrentamento cotidiano ao que foi deixado para trás, tanto em termos simbólicos quanto práticos. Por isso, acho que falar sobre sexo e relações afetivas pode nos ajudar a sair de lugares comuns do debate.
Maconha, desvio e desviantes
Becker, precursor da sociologia do desvio e escritor do renomado livro Outsiders (1963), ao fazer uma pesquisa com músicos de Jazz que eram consumidores assíduos de maconha, nos informa que a noção do desvio depende das nossas interações sociais e circuitos em que estamos, para um grupo de maconheiros, o desviante é quem não fuma. Outro ponto é que as regras sociais são derivadas do poder de grupos dominantes que se impõem aos demais.
É interessante pensar nessa abordagem sobre o desvio que Becker nos apresenta, porque nos dá a oportunidade de refletir sobre as imposições a que somos submetidos em nosso país, onde o conservadorismo ainda predomina e contamina discursos que deveriam ser técnicos.
O direito ao aborto legal (que engloba a gravidez decorrente de estupro, vida da gestante em risco e anencefalia fetal) e a luta por sua ampliação é uma dessas pautas que não são respeitadas ou avançam por conta de moralidades que se fundamentam em preceitos religiosos.
E venhamos e convenhamos, é difícil nos livrarmos do senso comum que há em nós e nos desfazermos de certos valores, pré-concepções e ensinamentos de caráter quase universais. No Brasil, a proibição da maconha se fundamenta no racismo desde 1830, estamos falando de séculos de uma mentalidade que foi incutida em nós, especialmente pela mídia tradicional. Como superamos essa regra social que é moral e legal?
Além disso, a polícia não quer abrir mão do poder sobre o que Misse (2006) chama de mercadorias políticas, aquelas que agentes do Estado podem barganhar ilegalmente por ocuparem determinados cargos. Aquela velha prática de extorquir jovens de classe média e torturar pobres ao encontrar maconha em sua posse, é algo que eles não querem abrir mão. É o que a nota da PM parece indicar.
Mas e nós?! E os maconheiros?! Nós, assim como boa parte da população, estamos perdidos, nem especialistas em política de drogas conseguem afirmar com certeza quais efeitos práticos essa descriminalização terá. Estamos vivendo um período de transição e toda mudança levará tempo.
Bloco Não Monogamia Gostoso Demais | Foto: Matias Maxx
Maconha, sexo e outros tabus
A não monogamia é um exemplo interessante para nos fazer refletir sobre mudanças lentas e graduais na mentalidade. É cada vez mais comum escutarmos que “um casal abriu o relacionamento” e recebermos informações sobre como a monogamia alimenta uma estrutura de poder que é patriarcal, em que o contrato matrimonial e a exclusividade afetiva e sexual buscam o controle sobre o parceire e sobre o destino da herança familiar.
Além desse formato colocar, especialmente a mulher (nas relações heterossexuais), em uma situação de desigualdade em relação ao parceiro, por ficarem mais sobrecarregadas com os cuidados familiares e os trabalhos domésticos, em muitos casos encarando traições do companheiro.
E cada vez mais pessoas falam abertamente sobre a opção de adotar a não monogamia, o que ajuda a naturalizar esse conceito complexo que resumidamente engloba relacionamentos, dos mais diversos, em que a exclusividade sexual/afetiva não faz parte do acordo e todos podem se relacionar com quantos parceiros quiserem. Sendo uma proposta para descolonizar afetos ao experimentar novas formas de amar.
Para isso, é necessário haver consensualidade e diálogo franco sobre os sentimentos daqueles que estão a se relacionar e os limites da relação. Sendo a responsabilidade afetiva um elemento fundamental (spoiler: não significa que será aplicado).
Aos interessados, vale a pena ler um pouco sobre tais experiências no livro “Ame e dê vexame”, do psiquiatra e anarquista Roberto Freire, que relata suas experiências pessoais destacando a importância de se praticar o amor em liberdade, de forma lúdica, criativa e prazerosa. “As relações monogâmicas só existem na cabeça da mulher apaixonada”, de Adriana Ventura, é outro livro interessante sobre o tema.
Capas: “Ame e dê vexame”, de Roberto Freire e “As relações monogâmicas só existem na cabeça da mulher apaixonada”, de Adriana Ventura
Bom, este é um debate que é feito há anos, a crítica à monogamia não é recente, mas me parece que vêm sendo um tema cada vez mais discutido e praticado. E, certamente, já foi muito mais difícil falar sobre o assunto, assim como já foi muito mais difícil dizer abertamente “sou usuário de maconha”. Afinal, são inúmeros os casos de pessoas que foram e que permanecem sendo estigmatizadas, presas, agredidas ou internadas por usarem maconha.
Mas voltemos a não monogamia. Mesmo entre aqueles que decidiram encarar esse novo formato, há dificuldades, porque é necessário desconstruir tudo o que fomos ensinados sobre o que é o natural em um relacionamento amoroso, vivendo-o.
Sabe aquela sensação de que o sexo foi bom para caralho e você se amarrou em estar naquela companhia, quer ter mais momentos com a pessoa, mas sente medo de se aproximar e parecer emocionado, mesmo com as cartas na mesa?! Isso é castração. E quando você cai no erro de transar com um amigo ou aspirante a amigo e a parada fica estranha depois?! Pô, mas a pessoa não era não mono e super desconstruída?! Acontece…
E acontece porque são relações entre pessoas, com suas questões, momentos de vida e eternas construções e desconstruções internas. É necessário aprender a praticar essas mudanças no cotidiano E acho que é nesse ponto que a descriminalização da maconha e a não monogamia se aproximam. Ambas nos apresentam possibilidades concretas de mudanças de mentalidade que nos levam a novas possibilidades de existência. Representam rupturas no sistema, nos valores e nas hierarquias. Mas a palavra tem que ser passada adiante.
Por outro lado, maconha e sexo são coisas que combinam bastante, um deixa o outro muito mais gostoso. Aliás, usar maconha também facilita aproximações, mais uma coisa que devemos agradecer a esta plantinha tão boa para contatos humanos. Quem nunca usou aquela velha tática de pedir o isqueiro ou uma seda emprestada para puxar um assunto com aquela pessoa interessante..?!
Esse pensamento ficou martelando na minha cabeça depois de viver uma situação no mínimo engraçada, estava num bar com o meu bando de fêmeas maconheiras, quando um cara (do nada) começou a mostrar fotos do seu cultivo indoor de maconha para minha amiga. Percebi que estava presenciando um complexo rito de acasalamento e me afastei.
Maconha, a luta pela liberdade e o direito ao prazer
E essa viagem toda é para dizer que estamos passando por um momento de transição em que precisamos tanto aprender sobre a descriminalização, quanto educar as pessoas sobre a maconha e o seu uso. E isso envolve botar a cara, se expor na medida do possível para cada realidade.
É o momento de abrirmos o jogo com familiares, amigos e deixar claro que usar maconha não nos torna incapazes e nem retira nossa responsabilidade sobre o que precisamos dar conta. Reflita sobre postar uma foto com o cultivo do seu amigo, para mostrar que é só uma planta, se julgar que isso não te coloca em risco.
É o momento de sairmos do armário, maconheiros. É o momento de nos juntarmos com outros maconheires e conspirarmos por um mundo mais livre, mais humano, mais civilizado. É momento de dialogarmos com quem não pensa como a gente, para mostrarmos a naturalidade que é fazer uso de uma planta que acompanha a humanidade desde os primórdios da sua existência.
Assim como, precisamos educar e sempre nos reeducar nas formas com que nos relacionamos com o outro, seja como tratamos outros desviantes, quanto na forma com que trocamos com nossos parceiros, afinal, o importante é formar redes. Nos conectarmos com mais pessoas para nos fortalecer afetivamente e politicamente para um dia conseguirmos transformar em ruínas todas as formas de aprisionamento.
Precisamos agir para moldar os rumos de uma nova política de drogas no Brasil à nossa maneira. E isso só se faz coletivamente e se constrói com tempo, paciência e muito amor nas suas mais variadas formas e gestos. Porque sempre terão aqueles que não vão querer abrir mão do modelo antigo.
E no que tange a descriminalização da maconha, a PM é aquele ex abusivo que não aceita que a relação acabou e entra numa de forçar a barra para o relacionamento continuar. Não cairemos nessa!
Referências:
BECKER, H. (1963). Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FREIRE, Roberto . Ame e dê Vexame. Guanabara, 1990.
MISSE, M. As Ligações Perigosas, Mercado Informal Ilegal, Narcotráfico e Violência no Rio. In: Crime e Violência no Brasil Contemporâneo: Estudos de Sociologia do Crime e da Violência Urbana. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
VENTURA, Adriana. As relações monogâmicas só existem na cabeça da mulher apaixonada. Paraná: Viseu, 2023.