Cinema, política, cultura, arte e educação, tendo a maconha como centralidade, são os atrativos do FICC argentino, em meio a ataques ao setor cultural
Por Gustavo J. C. Maia
Entre 15 e 24 de fevereiro, Buenos Aires sediará a quarta edição do Festival Internacional de Cinema Canábico (FICC). O evento, de entrada livre e gratuita, contará com a exibição de 25 filmes, produzidos em 13 países, nos formatos longa-metragem e curta-metragem. Entre os dias 25 de fevereiro e 10 de março, os filmes também estarão disponíveis online para toda a Argentina através da plataforma octubretv.com.
Com três sedes na região central da capital argentina, o FICC Buenos Aires oferecerá, para além das sessões de cinema, rodas de conversa, oficinas, mostra de arte, espetáculos musicais, premiações e festa.
O FICC foi criado com o objetivo de criar um espaço cultural de diálogo e reflexão sobre a cannabis, tendo como eixo fundamental o cinema, mas incluindo também outras representações artísticas como a música, a fotografia, etc. Ao longo da sua programação, reflete um olhar deslocado, fora da norma histórica estigmatizante utilizada para falar desta planta. – Alejo Araujo, co-diretor do FICC
Vivendo um contexto político difícil para o setor cultural, o evento perdeu apoios institucionais importantes com a chegada do presidente de ultradireita Javier Milei ao poder, como os aparelhos de Museus Nacionais para a sua realização. Ainda que com dificuldades, seus organizadores mantiveram o caráter gratuito, popular e educativo do festival.
Às vezes parece que estamos num daqueles pesadelos recorrentes, de um filme que já vimos e tem um final horrível. Decidimos voltar ao nosso motor inicial, recuperar os nossos conhecimentos, lutar pelos direitos de todos, levantar a voz contra a hegemonia, gerar espaços de encontro, de construção de comunidade, de abraçar organizações e grupos sociais, respirar cultura, memória, identidade. O FICC funciona como um “ponto de encontro” entre a arte, a cultura, o ativismo canábico, a ciência e tudo o que compõe esta comunidade interessada na maconha. – Malena Bystrowicz, co-diretora do FICC.
Durante a campanha presidencial, Javier Milei afirmou que fecharia o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) e o Ministério da Cultura, caso ele fosse eleito. A proposta de cortar o financiamento público para a indústria cinematográfica e outros setores culturais provocou nas últimas semanas de janeiro protestos intensos no país, contando com o apoio internacional de figuras como Pedro Almodóvar, Alejandro González Iñárritu e Aki Kaurismäki.
Parte da Lei Ônibus, a medida gerou preocupações entre atores, produtores e diretores argentinos, que argumentam que o apoio estatal é fundamental para manter uma indústria cinematográfica vibrante, que é referência na América Latina.
Após os protestos, o governo recuou parcialmente, garantindo a proteção dos recursos do setor, mas buscando limitar despesas administrativas. A discussão sobre a Lei Ônibus, que busca cortar gastos públicos e desregulamentar a economia, continua no Congresso, com uma possível votação na Câmara dos Deputados nas próximas semanas. Se aprovado, seguirá para Senado.
Participação Brasileira
Três produções brasileiras foram selecionadas para a programação desta edição, um longa e dois curtas.
Meteorango Kid: Procura-se, vivo ou morto (2023)
Meteorango Kid: Herói Intergalático é um filme de 1969, que envolve tropicalismo, resistência e drogas na Salvador do fim dos anos 1960 e que foi censurado pela Ditadura Militar brasileira, tornando-se um símbolo da contracultura. Neste longa documentário de Marcel Gonnet e Daniel Fróes, o diretor do filme, André Luiz Oliveira, nos guia através dos mitos deste ícone do cinema marginal. (99 min)
Assista o trailer abaixo:
Perguntado sobre o papel da planta no contexto do filme, Daniel Fróes, codiretor do longa, explica que a maconha fazia parte das descobertas da geração dos anos 60, que é a geração é retratada no documentário a partir dos personagens da contracultura da cidade de Salvador envolvidos na produção do filme Metorango Kid.
Naquele contexto a maconha era uma forma de romper com a caretice familiar da Bahia provinciana e também do modelo de subjetividade implantado pela ditadura militar brasileira. Nesse sentido, as substâncias psicoativas estão inseridas em um ato de rebeldia e também de ampliação de horizonte existencial e estético, o que não exclui a possibilidade das “bad trips”. Essa geração foi muito ousada em escancarar essa questão e pagou um preço por isso, muitos foram presos e internados compulsoriamente. Hoje esse tema ganhou uma nova dimensão com a regulamentação da cannabis e a pesquisa sobre os usos terapêuticos. Em boa medida a atitude de confrontação da contracultura criou as condições para o questionamento da guerra às drogas e a construção de uma nova abordagem do tema em vários âmbitos. – Rafael Dias, pesquisador e roteirista do filme.
Baseado em fatos (2023)
Neste curta-metragem de ficção da cineasta Amanda Rezer, a divertida personagem Mari passa a enfrentar uma crise de abstinência um pouco mais delirante que o convencional, após resolver parar de fumar maconha. (17 min)
A diretora explica que o filme tem o objetivo de despertar a reflexão sincera, através da comédia, sobre a importância da responsabilidade no uso de substâncias, tanto na questão de redução de danos, quanto na frequência do uso e como a falta disso pode afetar a vida pessoal de alguém. Ela valorizou a existência do FICC e o seu orgulho em fazer parte do evento:
Ter recebido a seleção do FICC foi muito especial principalmente por podermos acessar que o cinema canábico existe e está frutífero, com muitas produções até mesmo parecidas com a nossa. Nos traz muita alegria saber que há mais maconheiros por aí engajados em fazer arte através do cinema e sem medo de fazer isso sobre o que gostam, sobre maconha. – Amanda Rezer, diretora do curta Baseado em Fatos.
Conserva (Enlatado) (2023)
Nos anos 1980, as correntes do Oceano Atlântico presentearam o litoral brasileiro com centenas de latas cheias de maconha. Neste curta de Diego Benevides, o Velho Pereira conta sua história com o Verão da Lata e relembra seu passado através de uma Super-8. (13 min)
Benevides explica que o filme busca proporcionar uma desconstrução da centralização de certos temas, expandindo o diálogo sobre eventos históricos e sociais para alcances mais amplos e valoriza a participação do filme do FICC como um afirmação da diversidade da cultura canábica brasileira-paraibana.
Este evento temático oferece uma plataforma única para destacar as nuances e perspectivas singulares que permeiam a relação entre a cannabis e a sociedade brasileira. Participarmos do FICC não apenas ilustra a contribuição cultural única da Paraíba, mas também destaca a importância do cinema como uma ferramenta poderosa para amplificar vozes e promover diálogos significativos. Festivais temáticos como o FICC oferecem uma arena onde o audiovisual se torna uma expressão artística, cultural e ativista. – Diego Benevides, diretor de Conserva (Enlatado).
Júri internacional
Além dos filmes, o Brasil também é representado no corpo de jurados da categoria curta-metragem pelo jornalista e documentarista Matias Maxx. Com 25 anos de estrada no jornalismo canábico e underground, produção de filmes e ativismo na construção de marchas da maconha, Matias valorizou o caráter internacional do evento e a seleção de filmes de altíssima qualidade e muita diversidade, que vão desde os experimentais, passando por cinema universitário até super produções.
Como cineasta, ele participou de duas edições anteriores do FICC com os curtas Uma de quinze: maconha na ditadura (2020) e Juntando as Pontas (2022) e teve a oportunidade estar presente na 3ª edição argentina, em 2023:
Desde que eu tive conhecimento do FICC eu fiquei muito empolgado, tive uma sensação de pertencimento muito grande, porque apesar de ser um festival internacional, com filmes do mundo inteiro, ele é um festival latino, com origem na Argentina e no Uruguai. Eu tenho 3 nacionalidades, sou cidadão brasileiro, argentino e uruguaio, tenho pai argentino e mãe uruguaia, e trabalho com cinema há mais de 20 anos, assim como falo de maconha. Então, esse festival une duas coisas muito marginalizadas, que são o cinema latino e a maconha, e eu quis muito participar. Tive a oportunidade de ir em 2023, participei de charlas, conheci muita gente maneira e posso afirmar que é um puta evento foda, em um lugar incrível, com uma infraestrutura muito legal e filmes de alto nível, premiados internacionalmente, com shows, palestras, exposições, um evento cultural muito bem produzido… E com a temática da maconha. É incrível existir uma parada dessa. – Matias Maxx, jornalista e cineasta.
Esta edição conta com dois corpos de jurados, que avaliarão e premiarão as categorias de melhor longa-metragem e melhor curta-metragem, e contam também com representantes da Argentina, Chile e Peru, além do Matias representando o Brasil.
O Festival
Realizado desde 2019, o FICC já teve quatro edições em Montevidéu, no Uruguai, e duas em Santiago do Chile, além das edições argentinas. Os filmes são divididos em seções temáticas e competições, que contam com júris internacionais especializados, e que fornecem ferramentas e informações sobre os diversos usos da cannabis e seus inúmeros atravessamentos com os campos da saúde, justiça e direitos humanos.
Segundo seus idealizadores, os produtores culturais Malena Bystrowicz e Alejo Araujo, o evento surge da necessidade de ampliar as perspectivas culturais sobre a maconha através do audiovisual, a partir de uma abordagem social e comprometida com a multiplicidade de temáticas que envolvem a planta. Entendendo o cinema como uma poderosa ferramenta de transformação social, geradora de consciência, reflexões e comportamentos:
Somos um Festival com uma temática específica, que propõe claramente uma mudança de paradigma através do cinema, e uma perspectiva que inclui os direitos dos usuários. Acreditamos que é preciso sair do armário e o cinema é sempre um aliado. Confiamos firmemente que o FICC é um espaço proativo para discussão sobre a questão da cannabis a partir de uma perspectiva cultural. – Alejo Araujo, co-diretor do FICC.
O Cannabis Monitor esteve presente na 3ª edição do FICC em Montevidéu, em 2021, e produziu uma cobertura do evento. Assista abaixo:
Culturas canábicas
Enquanto evento e aparelho cultural que se propõe promotor de produções culturais com a temática da maconha, acrescido de ações informativas e educativas, um festival de cinema como o FICC é uma ferramenta poderosa de encontros, trocas de saberes e aquisição de repertório sociocultural para um debate maduro sobre um tema ainda tão estigmatizado e desqualificado na esfera pública.
O antropólogo Marcos Veríssimo, que trabalhou academicamente o conceito de cultura canábica no livro Maconheiros, fumons e growers: um estudo comparativo do consumo e de cultivo caseiro de canábis no Rio de Janeiro e Buenos Aires, afirma que não faz muito sentido falar em cultura canábica no singular e, sim, em culturas canábicas, uma vez que o que se chama de cultura canábica se realiza sempre a partir de condicionantes e constrangimentos que são de ordem cultural, local. Deste modo, o festival de cinema canábico cumpre um papel importantíssimo no processo de desestigmatização da planta, a partir do momento que apresenta e normaliza diversas abordagens do tema:
Um festival de cinema canábico, na medida em que consegue acolher expressões culturais de diferentes lugares, atores e países, contribui para permitir que essa pluralidade de culturas canábicas possa ser expressa, nos permitindo fazer comparações por contraste, observando as condicionantes locais que aproximam e afastam as diversas experiências do seres humanos com a cannabis. – Marcos Veríssimo, antropólogo, pesquisador do Psicocult/UFF.
Malena Bystrowicz complementa que o trabalho do setor cultural é indispensável para este novo paradigma canábico que está a se construir a partir de vários setores e camadas sociais, principalmente pelo seu valor de comunicar e questionar:
Exibimos filmes de diferentes regiões. Nesta próxima edição estarão representados 13 países. Isso nos aproxima de filmes que dificilmente poderíamos ver, uma multiplicidade de vozes que dão lugar a diferentes realidades e formas de representação dos diferentes usos dados à planta. Realidades distantes com as quais muitas vezes nos identificamos, pois as histórias se repetem onde quer que estejam. – Malena Bystrowicz
O cinema como recurso pedagógico
O cinema tem o poder de nos marcar para a vida, com tramas, cenas, personagens, estéticas, cenários ou mensagens que constroem nossos imaginários e repertório cultural para o convívio social. Quem não possui algum filme que lembre com detalhes e saiba até as falas de cor? E quantos filmes clássicos e icônicos não representam até hoje a cultura canábica, desde os divertidos Cheech & Chong (1978) e O Barato de Grace (2000), passando por documentários impactantes como Grass is Greener (2019) e os brasileiros Cortina de Fumaça (2009), Quebrando o Tabu (2011) e Ilegal (2014), até dramas de ficção marcantes como Bicho de sete cabeças (2001)?
O professor e pesquisador, Francisco Coelho, vinculado ao Grupo de Pesquisa Educação e Drogas (GPED/UERJ), autor do livro Educação sobre drogas e formação de professores (2019), destaca as muitas possibilidades de intervenção do cinema e das audiovisualidades no contexto de ensino sobre drogas nos espaços pedagógicos:
Esse têm sido um caminho promissor para pensar e alastrar os debates sobre a cannabis dentro e fora dos ambientes pedagógicos. Seja pelos dramas, animações ou documentários, iniciativas que mobilizem os docentes das escolas públicas para um novo olhar dessas artes visuais, possibilita aos telespectadores vivenciarem questões mais próximas do cotidiano do uso e do abuso de psicoativos, dos benefícios e malefícios, dos cenários de vulnerabilidade que os usuários são submetidos, entre outros temas. O cinema permite as escolas irem além de sua função pedagógica, se tornando um espaço de arte, de culturas e de debates sobre a Redução de Danos, por exemplo. O uso das artes visuais, especialmente o cinema, provoca cenários de tensões, questionamentos, debates, o que é muito rico pro ambiente de ensino.
Um evento cultural entre tantos comerciais
Em meio a tantos eventos canábicos marcados pelo fator comercial, das indústrias ligadas aos setores medicinal, de cultivo e de parafernalha para consumo, um evento essencialmente cultural, capitaneado pelo cinema, mas com abertura para outras expressões e produções culturais como música, arte, literatura, desponta como um oásis de aprendizados, provocações e reflexões sobre o que somos enquanto usuários, o que podemos ser, e como nos relacionamos com essa planta para muito além do consumo e das tendências do mercado ou dos produtos e serviços em torno do “ouro verde”.
Eventos culturais, gratuitos e educativos, não trazem retorno em vendas de produtos e lucros para as empresas do mercado canábico, que priorizam investir no patrocínio e participação em feiras e exposições de negócios. Infelizmente, a estreiteza no olhar dos empresários brasileiros para o poder da informação dificulta a realização de eventos como esse por aqui. Argentina, Uruguai e Chile já realizam suas edições do Festival Internacional de Cinema Canábico. México e EUA também possuem eventos do tipo. Por aqui, seguimos nós sonhando com uma edição brasileira e torcendo pelo cinema, pela maconha e todas as formas de culturas canábicas.