A sombra de Trump: a geopolítica da Guerra às Drogas

Os ecos do passado retornam com força no cenário internacional e na América Latina
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Hoje, trago à coluna um tema que, embora possa parecer um eco do passado, ressurge com uma força preocupante no cenário geopolítico internacional: a “Guerra às Drogas”. E, infelizmente, os ecos do passado retornam com força no cenário internacional e na nossa região: com as ações de Donald Trump, os tambores das guerras, golpes e intervencionismo voltam a soar em nossa região.

Para quem acompanha minimamente o debate sobre políticas de drogas, a conclusão é unânime: a guerra global contra as drogas falhou. Lembro-me bem que, já no final dos anos 2000, um balanço contundente da Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia, que incluía ex-líderes como César Gaviria da Colômbia e Ernesto Zedillo do México, já afirmava categoricamente que essa “guerra” não atingiu seus objetivos.

A recomendação era clara: adotar outras medidas distintas das da “guerra”, como a criação de mercados regularizados, para conter o crime organizado.

Em 2013, Fernando Henrique Cardoso, então presidente da Comissão Global sobre Políticas de Drogas, e Ruth Dreifuss, ex-presidente da Suíça, assinaram um artigo com forte impacto na agenda internacional: “Uma verdade inconveniente sobre a guerra às drogas”, que denunciava os custos humanos devastadores dessa abordagem.

Os números eram e continuam a ser alarmantes: centenas de milhares de pessoas encarceradas, milhões presas, execuções, abusos em “centros e clínicas de tratamento” e a negação de medicamentos que poderiam salvar vidas.

Mais recentemente, na 67ª sessão da Comissão de Narcóticos (CND) da ONU, o alto-comissário para os Direitos Humanos, Volker Türk, não hesitou em declarar explicitamente o fracasso da “guerra às drogas” em proteger vidas e dignidade. Ele foi certeiro ao afirmar que, se as drogas “matam e destroem vidas e comunidades”, o mesmo fazem “as políticas de drogas opressivas e regressivas”, que resultam em prisões superlotadas e violações sistemáticas.

Mas, esse fracasso voltou como força narrativa, como forma desesperada para manter a hegemonia internacional, em um cenário instável de reequilíbrio de forças no tabuleiro da geopolítica.

Os primeiros acordes do segundo ato de Trump: uma partitura geopolítica em desalinho

O retorno de Donald Trump ao palco da política estadunidense movimenta as peças do tabuleiro global, reabrindo debates sobre os rumos da política externa dos Estados Unidos. Contudo, é fundamental situar essa discussão em seu devido contexto: sua dominação geopolítica está em declínio histórico, marcado por desafios internos, por uma capacidade militar exaurida por “guerras eternas” e por uma base industrial fragilizada.

O fracasso de sucessivos governos (democratas e republicanos) em reverter esse quadro apenas pavimentou o caminho para a reinvenção de uma retórica que, sob o manto de “paz através da força”, promete restaurar uma hegemonia questionada, mas o faz com contornos que revelam mais os limites do poder do que sua reafirmação.

Trump, com seus slogans “Make America Great Again” (MAGA) e “America First”, não sinaliza um retorno ao isolacionismo tradicional. Em vez disso, seu projeto parece ser uma reorientação estratégica: evitar o envolvimento em conflitos diretos onde os interesses dos EUA não estejam em jogo, reafirmar a dominação no “Hemisfério Ocidental” como uma “esfera de influência”, e, acima de tudo, concentrar recursos – militares, geopolíticos, econômicos – na contenção da China, que se apresenta como o principal desafio estratégico à liderança estadunidense.

É dentro dessa lógica que se inserem retóricas agressivas como a apropriação da Groenlândia, a retomada do Canal do Panamá, os ataques ao México, Brasil, Venezuela ou a anexação do Canadá, invocando a Doutrina Monroe e o expansionismo de McKinley. A diferença crucial, contudo, é que, enquanto McKinley surfava na onda de ascensão da potência, Trump opera em um contexto de evidente declínio, transformando suas ameaças em um reconhecimento tácito das limitações de poder.

Um dos impactos mais notáveis da abordagem trumpista tem sido sua determinação em desmantelar a associação com a Europa, um pilar da ordem hegemônica por mais de meio século. Sua postura de desprezo à diplomacia com parceiros europeus, surpreendendo até mesmo analistas, revela um objetivo claro: deslocar o foco dos EUA de questões europeias para as regiões do hemisfério ocidental e Ásia-Pacífico, consideradas mais estratégicas para os recursos limitados do imperialismo estadunidense.

A tentativa de Trump de encerrar a guerra na Ucrânia – ou, ao menos, de desvincular os EUA dela através de uma negociação unilateral com a Rússia – é um exemplo vívido. Essa iniciativa, contudo, expõe a fragilidade da própria tese de “paz através da força”, pois a realidade do conflito ucraniano mostra que a Rússia detém vantagem, e os EUA não podem projetar força suficiente sem o risco de uma escalada insustentável.

A consequência direta tem sido um movimento acelerado dos países europeus para fortalecer seus próprios exércitos, conscientes de que não podem mais contar cegamente com a proteção de Washington.

Hard Power e os limites globais

A ênfase de Trump no “hard power” – poder duro – em detrimento do “soft power” é outra marca registrada de sua política externa, evidenciando a perda de capacidade de produzir hegemonia no cenário internacional. O desmantelamento da USAID, por exemplo, reflete a crença de que o arsenal da diplomacia tradicional é um desperdício. Em seu lugar, ameaças militares diretas e econômicas (tarifas) são empregadas para forçar aliados e adversários à submissão.

Essa estratégia, em particular, parece ter encontrado um terreno mais fértil na América Latina, configurando uma espécie de nova Doutrina Monroe. A militarização da fronteira EUA-México, a retomada do velho discurso de “Guerra às Drogas”, a instrumentalização da imigração e as ameaças tarifárias para obter concessões de nações latino-americanas – forçando-as a alinhar seus aparatos de segurança aos interesses de Washington – são exemplos de como Trump tem buscado reafirmar a dominação regional.

A renegociação do USMCA com México e Canadá, pressionando por termos mais favoráveis aos EUA, demonstra a aplicação desse poder.

No Oriente Médio, por exemplo, a tentativa de impulsionar os Acordos de Abraão para conter o Irã se choca com a realidade do genocídio em Gaza, que Trump apoia com sua retórica. A retomada dos ataques dos Houthis, arrastando os EUA ainda mais para a região, apenas evidencia os limites do unilateralismo.

A capacidade de Trump de negociar com o Irã, ou de conter Israel e as monarquias do Golfo, permanece incerta, e um erro de cálculo pode aprofundar ainda mais a agitação regional, envolvendo os EUA em um pântano do qual buscam, sem sucesso, se afastar desde Obama.

O confronto com a China é o epicentro da reorientação de Trump. As implicações de uma disputa entre as duas maiores economias do mundo, profundamente interligadas, já se manifestam em agitação econômica. Embora Trump pareça recuar frente à enérgica resposta chinesa, a China tem se preparado para esse embate econômico, demonstrando resiliência e, recentemente, força política com um imenso desfile militar.

Estrategicamente, a China pode, em um cenário de guerra comercial mais severa, impulsionar o consumo interno e, ao mesmo tempo, se posicionar internacionalmente como vítima da agressão americana, defensora do multilateralismo e do livre comércio.

A perspectiva de um intenso processo de desalinhamento das duas economias, impulsionado por uma escalada tarifária, é cada vez mais real, e as negociações bilaterais propostas por Trump, em vez de uma abordagem multilateral, apontam para um caminho longo e sinuoso. A recente reunião entre China, Japão e Coreia do Sul, a parceria estratégica com a Índia, em resposta às tarifas de Trump, inclusive, acendeu um alerta sobre as relações tradicionais dos EUA na Ásia-Pacífico.

Os primeiros movimentos do segundo governo Trump demonstram que a “paz através da força” é, fundamentalmente, uma política externa experimental e pouco coesa, com idas e vindas constantes. Longe de ser pacífica ou tão forte quanto seus defensores alardeiam, ela representa uma tentativa radicalmente diferente de gerir o declínio da hegemonia estadunidense, mas que, paradoxalmente, pode agravar sua situação estratégica global.

A crise que essa política gera a nível internacional é acompanhada por uma queda na aprovação interna e por uma oposição crescente, inclusive dentro de instituições-chave como o Pentágono.

O que podemos ter certeza é que os próximos anos serão marcados por uma dinâmica internacional instável e crises contínuas para a tentativa desesperada de manter a hegemonia americana na política externa – crises que a extrema-direita, em sua essência, não pode resolver de forma clara.

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Navio de guerra estadunidense no Mar do Caribe. | Foto: Logan Goins/Marinha dos Estados Unidos


O retorno do proibicionismo e o papel de Trump

O cenário geopolítico internacional passa por um rápido processo de realinhamento, marcado por incertezas e disputas de poder. Nesse contexto de enfraquecimento das instituições multilaterais, antigas políticas voltam a ser ressignificadas. O proibicionismo e a chamada “guerra às drogas” reaparecem como instrumentos estratégicos de política externa, ultrapassando o campo da segurança pública.

Hoje, cumprem o papel de mecanismos de pressão diplomática, de controle geoeconômico e de imposição de normas alinhadas a interesses hegemônicos – além, é claro, dos navios USS San Antonio e USS Iwo Jima, da 22ª Unidade Expedicionária de Fuzileiros Navais e de caças autorizados para abater…

Essa postura, que ecoa doutrinas do século XIX, como a Monroe, busca reafirmar a hegemonia americana. Vimos isso ao vivo na 68ª sessão da CND, realizada em março de 2025, onde os EUA atuaram de forma a enfraquecer o multilateralismo e, instrumentalizaram a política de drogas para justificar uma “guerra de tarifas” e até mesmo reforçar uma agenda anti-“cultura woke”.

A delegação americana, sempre acompanhada pela Argentina, se isolou ao se opor a todas as resoluções e exigir a retirada de termos como “gênero” e “diversidade” – uma postura lamentável.

As declarações apresentadas pelos EUA na CND são um retrato fiel dessa regressão. Cito trechos que ouvi ao vivo das intervenções da delegação americana:

  • Crítica aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS):

     “Os Estados Unidos se opõem à ligação entre o trabalho do CND com a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A Agenda 2030 e os ODS promovem um programa de governança global suave que é inconsistente com a soberania dos EUA e adverso aos direitos e interesses dos americanos.”

  • Rejeição à inclusão da palavra “gênero”:

    “O texto não reconhece a realidade natural de que existem dois sexos – homens e mulheres. Pela liberdade e dignidade de todos os homens e mulheres, devemos parar de usar termos relacionados à “ideologia de gênero”.” “O mais preocupante é a menção dos termos “dados desagregados de gênero” e “políticas e programas sensíveis a gênero”, conceitos sem significado acordado. Além disso, esses termos são usados para endossar causas culturais divisivas e defender a censura de pontos de vista online.”

  • Fortalecimento de políticas proibicionistas e imposição de tarifas:

     “Alguns criticaram o presidente Trump por emitir tarifas recentemente, com base no fracasso de algumas nações em conter as drogas sintéticas que jorram como um cano estourado através das fronteiras dos Estados Unidos. Eles dizem que é pretexto.”

Essas declarações mostram um alinhamento perigoso da política de drogas com agendas políticas domésticas e econômicas, desvirtuando o foco na saúde pública e nos direitos humanos.

A “Guerra às Drogas” como pretexto para intervenção na América Latina

Essa política anunciada na 68ª sessão da CND não é apenas retórica. Ela já ganha contornos práticos em nossa região, com a legitimação de tarifas como chantagem econômica e política, e a justificação de movimentações de tropas e discursos de intervenção. Isso é um “revival das práticas vividas durante o Plano Colômbia” e das “justificativas para financiar as ditaduras militares em nossa região“.

Trump, revive o discurso de Guerra às Drogas e promove um conjunto de iniciativas na região:  

  • Assinatura secreta de uma diretiva ao Pentágono para usar força militar contra cartéis latino-americanos classificados como terroristas.

  • Ameaças de tarifas ao México, acusando o país de permitir a entrada de fentanil e migrantes irregulares, e até a sugestão de enviar as Forças Armadas americanas para o México (rejeitada pela então presidente Sheinbaum).

  • Classificação do “Cartel de los Soles” da Venezuela, supostamente liderado por Nicolás Maduro, como grupo terrorista global.

  • A declaração de Trump sobre um ataque militar a um barco venezuelano, matando “narcoterroristas”, visando membros da gangue Tren de Aragua.

  • Autorização de abater caças venezuelanos.


É fundamental entender que a “Guerra às Drogas” está sendo reconfigurada como um dispositivo de implementação de uma política de guerra, de coerção e intimidação na América do Sul e na América Latina. Isso nos impõe um desafio e, ao mesmo tempo, uma oportunidade.


O papel do Brasil: liderança pelo multilateralismo e Direitos Humanos

Diante desse cenário de retrocesso, a América do Sul e a América Latina precisam se unir em uma agenda que proponha uma política de drogas baseada em evidências. Essa política deve ter como pilares a garantia da Soberania Nacional e um compromisso irrestrito com a reparação histórica e o desenvolvimento sustentável para territórios e comunidades que foram e continuam sendo as mais afetadas por essa guerra.

O Brasil, com sua diplomacia respeitada e seu histórico de construção de pontes, tem um papel crucial a desempenhar. É hora de nosso país construir uma política alinhada às experiências mais inovadoras e humanas que surgiram em diversos países, como Portugal, Uruguai, Canadá, Malta e Alemanha, onde a descriminalização do porte para uso pessoal, políticas inovadoras de cuidado, de garantia de direitos como “Moradia Primeiro”, já é uma realidade sem os temidos aumentos exponenciais de consumo.

Na 68ª sessão da CND, onde os EUA e a Argentina ficaram isolados em sua postura proibicionista, o Brasil teve um papel de destaque, reafirmando o multilateralismo, defendendo uma nova política de drogas que valorize a Cultura de Paz e combata a lógica da guerra.

É imperativo que o Brasil implemente em nosso país as resoluções aprovadas nessa CND, que refletem avanços e um olhar mais humano sobre a questão das drogas. Precisamos consolidar uma abordagem que não criminalize o usuário, que invista em saúde pública, prevenção e tratamento baseado em evidências, e que entenda a complexidade social e econômica por trás do fenômeno das drogas.

A história já nos mostrou o preço da Guerra às Drogas em termos de vidas, direitos e desenvolvimento. É tempo de o Brasil e a América Latina se posicionarem de forma proativa, defendendo a soberania, a ciência e os direitos humanos, e pavimentando o caminho para uma política de drogas mais eficiente e promotora de Direitos e Desenvolvimento. A discussão é urgente, e a ação, indispensável num cenário internacional instável.


Para mais informações sobre a 68º sessão da CND/ONU:


leo pinho

maconhometro
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