Na noite do dia 30 de setembro, no apagar das luzes do prazo estipulado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Anvisa e a União protocolaram uma petição conjunta no processo que trata da regulamentação do cânhamo industrial no Brasil às 23:26h.
A expectativa de publicação de uma norma concreta, que permitisse o cultivo legal da cannabis com baixo teor de THC para fins medicinais e farmacêuticos, virou uma solicitação de mais prazo. O governo quer mais 180 dias para cumprir a determinação do STJ, que havia dado 6 meses para que essa regulamentação estivesse pronta.
O que o STJ decidiu?
Em novembro de 2024, o STJ fixou entendimento jurídico claro no chamado Incidente de Assunção de Competência (IAC 16):
O cânhamo (Cannabis sativa com menos de 0,3% de THC) não pode ser considerado proscrito pela Lei de Drogas. É lícito autorizar o plantio, cultivo e comercialização dessa variedade da planta, desde que para fins medicinais e/ou farmacêuticos.
A regulamentação caberia à Anvisa e à União, com prazo de 6 meses a partir da decisão. O objetivo era claro: desjudicializar o acesso, reduzir insegurança jurídica e dar respostas efetivas à crescente demanda da sociedade civil e do setor técnico.
E o que aconteceu no fim do prazo?
O que veio, no entanto, foi uma petição de última hora. O documento apresentado pela Advocacia-Geral da União e pela Anvisa reconhece que nenhuma das etapas finais foi cumprida: não houve publicação da portaria, nem votação da nova RDC, tampouco definição sobre flores com baixo teor de THC.
A principal justificativa foi a complexidade do tema, a mudança recente na direção da Anvisa, a necessidade de diálogo com os 27 estados da federação e o tempo exigido para seguir as boas práticas regulatórias previstas em lei.
O governo apresentou um novo cronograma, prometendo:
- Abertura de consulta pública até 30 de outubro;
- Consolidação das contribuições e minuta da norma até 31 de janeiro de 2026;
- Publicação da nova regulamentação até 31 de março de 2026.
Mas é importante lembrar: esse pedido ainda será avaliado pela Justiça. O STJ foi claro ao determinar que a regulamentação deveria estar pronta até 30 de setembro de 2025. Agora, caberá à relatora do caso decidir se o prazo será efetivamente prorrogado ou não. Até lá, o Brasil continua num limbo regulatório: com uma decisão judicial firme, mas sem norma publicada.
Omissões e preocupações
Um dos pontos mais controversos é que a pesquisa científica não foi incluída no escopo da minuta proposta, apenas falado “por alto”. Mesmo sendo essencial para garantir a eficácia e segurança de produtos medicinais, a Anvisa afirma que o acórdão do STJ tratava apenas de cultivo para produção, e não mencionava a pesquisa.
Além disso, a Anvisa aponta que, mesmo com a regulamentação publicada em março de 2026, o cenário realista para o primeiro pedido de autorização por empresas ou entidades interessadas só deve ocorrer entre 20 e 24 meses após isso, ou seja, entre 2027 e 2028.
Um passo pra frente, dois pra trás?
Enquanto países do mundo todo avançam em políticas públicas para o uso do cânhamo e da cannabis, o Brasil patina em decisões burocráticas, mesmo quando há ordem judicial.
A decisão do STJ foi clara: é preciso regulamentar o cânhamo e garantir acesso legal a insumos vegetais para uso medicinal e farmacêutico. A resposta, até agora, é uma lista de boas intenções que ainda não saiu do papel.
Fica a pergunta: quem ganha com mais 6 meses de espera? E quem perde?
Atraso, frustração ou oportunidade?
Apesar do atraso e da frustração de quem esperava uma regulamentação concreta ainda em setembro, um ponto positivo precisa ser reconhecido: a atual diretoria da Anvisa, recém-empossada, abriu diálogo com as associações de pacientes. Essa abertura aconteceu na véspera da petição, e embora tardia, representa um marco simbólico importante. Até então, as associações nunca tinham sido chamadas oficialmente para discutir o texto da regulamentação.
Essa aproximação abre caminho para um novo tipo de articulação política e técnica. As associações agora se mobilizam para formular uma proposta específica que contemple sua realidade, suas práticas e suas necessidades. E com os seis meses adicionais solicitados pela Anvisa, há uma janela real para organizar pressão popular, produzir conhecimento técnico e construir consensos.
A expectativa é que, ainda neste mês de outubro, seja iniciada a consulta pública prometida, e que, pela primeira vez, a sociedade civil, especialmente os pacientes, cuidadores, associações e cultivadores organizados, tenha voz direta na construção dessa norma. Agora, mais do que nunca, será necessário transformar essa abertura em mobilização real, coletiva e estratégica.