Recentemente o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, anunciou que o governo Trump está enviando tropas aéreas e navais para a região do Caribe “para controlar cartéis que levam ‘veneno’ aos EUA”. Esse movimento é um novo capítulo da já conhecida guerra às drogas, ´ uma política global proibicionista, de repressão e de caráter moral iniciada nos anos 1970 com Nixon e intensificada nos anos 1980 com Reagan, e da qual o Brasil é signatário.
Já foi mais que comprovado que esta política se mostrou incapaz de cumprir seus objetivos de erradicar o consumo e o comércio de drogas. Ao contrário, produziu consequências extremamente problemáticas, como encarceramento em massa, militarização dos territórios, milhares de mortes de pessoas vulneráveis, violação de direitos humanos e fortalecimento do próprio mercado ilícito de drogas.
O Brasil é um grande exemplo desse fracasso e não visualizamos o fim do paradigma do proibicionismo (Fiore, 2012) nem da ótica da guerra às drogas no horizonte político e social brasileiro.
É necessário fazer algumas reflexões sobre o que queremos dizer quando nos referimos à guerra às drogas. Antonio Escohotado e outros (Escohotado, Historia general de las drogas, 1999. Hives, La búsqueda del olvido. Historia global de las drogas, 1500-2000, 2004. Carneiro, Drogas: A história do proibicionismo, 2018) analisa a chamada “guerra às drogas” a partir de perspectivas históricas, políticas e culturais.
Apontam que a criminalização das drogas não nasce de evidências científicas, mas faz o uso de um discurso sanitarista que considera as drogas uma ameaça à saúde individual e social, discurso esse sustentado por interesses morais, religiosos, políticos e econômicos.
Neste movimento, no início do século XX os EUA assumem o papel de difusor internacional da proposta de políticas proibicionistas vinculadas a ideologias puritanas e ao controle social, principalmente de pessoas negras e imigrantes latinos.[1] O movimento foi radicalizado e difundido mundialmente pelo presidente Richard Nixon a partir de 1971.
Desta forma, Escohotado destaca que o proibicionismo funciona como um dispositivo de controle social e populacional, reforçando desigualdades sociais, raciais e geopolíticas. O proibicionismo também legitima perseguições políticas e raciais, como a perseguição aos negros, mexicanos e chineses nos EUA, movimentos revolucionários e de insurreições camponesas de esquerda na América Latina, de pessoas negras e comunidades periféricas no Brasil, permitindo assim a ampliação e qualificação da máquina repressiva do Estado.
Hoje podemos afirmar que desde sua implementação mundial a guerra às drogas fracassou em seus objetivos de reduzir o consumo ou eliminar os mercados internacionais de drogas. Por outro lado, criou mercados paralelos mais violentos, complexos e poderosos, fortaleceu o narcotráfico internacional e ampliou os riscos à saúde e os danos sociais. (Labrousse, 2010)
Escohotado resume a guerra às drogas como um projeto político de dominação dos EUA durante a guerra Fria, sustentado por moralismo e interesses econômicos e geopolíticos, que fracassou em seu objetivo declarado, mas foi bem-sucedido em gerar lucro, violência e controle social e político.
Mas se a guerra às drogas é um grande fracasso, por que Trump radicaliza este modelo falido?
Ao querer classificar cartéis e grupos criminosos como “inimigos terroristas”, Trump atualiza o discurso de guerra às drogas para o atual contexto sociopolítico mundial, expandindo suas intenções geopolíticas e econômicas.
Neste sentido, uma guerra global contra o terrorismo e os narcotraficantes justificaria incursões militares não autorizadas, intervenções políticas em países não alinhados ideologicamente e economicamente com os EUA e apoio político-econômico a grupos políticos locais defensores dos interesses de Trump. Podemos apontar os países latino-americanos como grande cenário desse movimento de Trump e dos EUA.
O desejo dos EUA de classificar organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) como organizações terroristas[2] se inscreve neste contexto como uma articulação de Trump para ampliar a sua influência nos países latino-americanos, principalmente México, Brasil e Venezuela, por interesses econômicos e políticos e com o apoio de movimentos ditos liberais e conservadores da extrema-direita locais.

Esse movimento, fazendo o uso do discurso securitário e de saúde pública, em nome de acabar com a crise dos opioides, em especial do fentanil nos EUA, é também usado como retórica de “ordem e força”[3] no debate interno dos EUA e da expansão do poder geopolítico dos EUA em conformidade com a onda neoconservadora de extrema-direita mundial que vem ocorrendo (Sanahuja, Burian. 2024), fazendo o uso do velho, mas sempre útil, discurso das drogas como o grande inimigo a ser combatido.
Na América Latina, as consequências da guerra às drogas foram extremamente graves. Países como México e Colômbia já viveram os custos humanos e sociais da militarização antidrogas imposta pelos EUA, massacres de civis, fortalecimento de milícias, fortalecimento dos cartéis de drogas, corrupção institucional e perda de soberania (Rodrigues, 2012).
Ao pressionar governos a aceitar extradições em massa, como aconteceu no início de 2025, impor a presença militar norte-americana, como vem acontecendo na costa da Venezuela em nome de combater o Cártel de los Soles, alegando que seu líder é o presidente venezuelano Nícolas Maduro, ou o recém anunciado Centro “Antiterrorista” do FBI, que será implantado no Paraguai para monitorar terroristas e narcotraficantes na região de Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), Trump reatualiza a guerra às drogas, impondo uma agenda neocolonial na América do Sul na qual a região é vista como “campo de batalha” de interesses norte-americanos, em especial contra a influência dos BRICS e da China.
E o Brasil neste cenário?
O discurso da guerra às drogas sempre encontrou um terreno fértil no Brasil, independentemente do governo, mas podemos destacar de forma crítica que com a mais recente ascensão da extrema-direita na política brasileira e sua retórica conservadora, a guerra às drogas e seu proibicionismo assumem um novo patamar, sendo uma de suas principais bandeiras morais e de repressão social.
Podemos dizer que esse campo político opera a partir do simbolismo da “lei e ordem” (Duarte, 2023, Calil, 2020), buscando eleger inimigos a serem combatidos, encontrando na criminalização de populações historicamente marginalizadas, como os LGBTQIAPN+, jovens negros periféricos, pessoas em situação de rua e pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas um campo de atuação perfeito, onde não encontra barreiras que o impeçam de agir.
E um dos seus principais meios de atuação é negar a construção de políticas de assistência e saúde para estas populações e implementar e endurecer políticas e tecnologias de repressão e extermínio dessas pessoas, montando um Estado necropolítico instrumentalizado e justificado política e socialmente.
Em um Brasil onde a extrema-direita venera Trump e os EUA, essa neo guerra às drogas encontra amplo apoio em todas as classes sociais. Nossa legislação de drogas, que na prática já opera com uma seletividade penal (Borges, 2018. Filho, 2023), é instrumentalizada pelo apelo da repressão violenta contra pessoas, comunidades e territórios atravessados pelo fenômeno das drogas. E em nome do combate às drogas, tudo é permitido.
Basta pensar nas Operações Verão e Escudo (2023/24) na Baixada Santista, na Chacina do Cabula em Salvador (2015), nas ações militares na Cracolândia do centro de São Paulo, nas guerras cotidianas nos morros do Rio e Janeiro, e em tantos outros exemplos aplaudidos pelos conservadores brasileiros, enquanto silenciam sobre as relações corruptas entre agentes estatais, elites econômicas e os grandes atores do narcotráfico, como podemos ver recentemente no episódio da ação da Polícia Federal na Faria Lima, centro financeiro do Brasil, na cidade de São Paulo[4].
Assim, a guerra às drogas impõe uma militarização da vida, principalmente em territórios vulnerabilizados, legitimando incursões policiais violentas, naturalizando a letalidade policial, o adoecimento pela violência estrutural e sofrimento psíquico, como nos mostrou Passos (2023).
A guerra às drogas não reduziu a circulação de substâncias nem inibiu novos mercados, e sim ampliou o controle social, a estigmatização de certos corpos e modos de vida e a visão de comunidades periféricas como territórios inimigos internos.

Como podemos ver, no Brasil nossa atual legislação criminaliza sobretudo usuários mais vulnerabilizados e pequenos varejistas, majoritariamente jovens negros e periféricos, sendo um dispositivo no qual se elegem determinadas vidas e corpos que são sistematicamente tratados como descartáveis.
E é esta guerra às drogas que é utilizada como meio de ganhos de capitais econômicos e políticos, sendo instrumentalizada como ferramenta cultural e simbólica pelo campo conservador, da extrema-direita e até de certos atores progressistas para suas ascensões políticas.
Um bom exemplo desta instrumentalização cultural e simbólica do proibicionismo é a discursividade de “demonização das drogas e dos usuários” para atacar movimentos sociais, ONGs, pesquisadores e profissionais da saúde e assistência que atuam para acabar com o paradigma proibicionista atual e que defendem uma outra política de drogas baseadas na promoção do cuidado, assistência e direitos humanos, acusando-os de “incentivar o uso de drogas” ou de “apologia ao uso de drogas”.
A Redução de Danos (RD) e seus trabalhadores e trabalhadores são os grandes exemplos dessa marginalização estendida pelo discurso conservador. Mesmo havendo uma portaria do Ministério da Saúde (Portaria 1.028/25) e compondo a RAPS (Portaria: 3088/11), a RD recebe ataques constantes e seus trabalhadores e trabalhadoras chegam a ser processados apenas por estarem cumprindo suas obrigações de cuidar de uma outra pessoa.
Ainda nas políticas públicas, podemos apontar a interferência de setores tantos da esquerda quanto da extrema-direita no lobby do financiamento e da expansão das comunidades terapêuticas (CTs), fazendo o uso do discurso dos usuários como “sujeitos doentes incuráveis” que também constitui o proibicionismo da guerra às drogas. Essas CTs muitas vezes usam de práticas violadoras de direitos humanos, como violência física e psicológica, por uma concepção moral do cuidado.
Em vez de fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), na qual o cuidado para pessoas que usam substâncias psicoativas tem uma posição central, o lobby das CTs redireciona recursos para instituições privadas e políticas alinhadas com a agenda conservadora.
Em síntese, no Brasil, a guerra às drogas e o conservadorismo da extrema-direita e também certos atores da esquerda estão profundamente entrelaçados, compartilhando a lógica da repressão, exclusão, marginalização e moralização da vida e de certos corpos.
É a partir deste contexto brasileiro de uma política de drogas marcada pela ênfase na criminalização e no encarceramento em massa[5], em detrimento de estratégias de saúde pública e garantias de direitos, que devemos ler os movimentos de Trump e suas relações com a extrema-direita brasileira neste tema.
Os interesses dos EUA e seu discurso de nova guerra às drogas deve ser compreendidos como um projeto geopolítico de intervenção no Sul Global, particularmente na América Latina. Tudo por meio de articulações de interesses econômicos, políticos e ideológicos, com o fortalecimento do aparato penal e repressivo e a manutenção do apoio dos EUA aos setores políticos e econômicos que vê em Trump o grande salvador do mundo livre e dos corpos e vidas saudáveis, em nome de Deus, pátria e família.

Referências:
BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
CALIL, Gilberto. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico, v. IX, n. 2, 2020.
CAZEIRO, Fernando; et al. Os novos manicômios: contrarreforma psiquiátrica, a mercantilização da loucura e a ascensão das comunidades terapêuticas no Brasil. 2024.
DUARTE, K. A. Dominação burguesa entre o velho e o novo: a ascensão da extrema-direita no Brasil. Serviço Social & Sociedade, v. 146, n. 3, e6628330, 2023.
FILHO, Fábio Ricardo Trad. A política criminal da guerra às drogas e a seletividade penal no Brasil. 2023. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2023.
FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estudos CEBRAP, n. 92, p. 9-21, 2012.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
LABROUSSE, Alain. Geopolítica das drogas. São Paulo: Desatino, 2010.
PASSOS, Rachel Gouveia. Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras em questão. Rio de Janeiro: Mórula, 2023.
RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico e militarização nas Américas: vício de guerra. Contexto Internacional, v. 34, n. 1, p. 9-41, jan. 2012.
SANAHUJA, José Antonio; LÓPEZ BURIAN, Camilo. Variações na geopolítica da extrema direita neopatriótica e o desafio à ordem internacional. CEBRI-Revista, ano 3, n. 11, p. 17-36, jul./set. 2024.
SHIDORE, Sarang. Os Estados Unidos e o Sul Global em um mundo pós-unipolar. CEBRI-Revista, ano 4, n. 14, 2025.
Notas:
[1] Aqui vale mencionar o papel do médico e político brasileiro José Rodrigues da Costa Dória (1857 – 1938), grande difusor das ideias proibicionistas das drogas a partir de uma perspectiva racial negra no Brasil do início do séc XX, principalmente da maconha, chegando a influenciar o pensamento dos EUA sobre o assunto. Para saber mais: RODRIGUES DÓRIA: A CHAMA DA PROIBIÇÃO DA MACONHA NO BRASIL: Luisa Saad, 2019. SAAD, L. Rodrigues Dória: A chama da proibição da maconha no Brasil. In: “Fumo de negro”: A criminalização da maconha no pós-abolição [online]. Salvador: EDUFBA, 2019, pp. 25-67. Drogas: Clínica e cultura collection.
[2] Entenda por que os EUA querem que PCC seja classificado como terrorista. Leticia Martins, CNN, São Paulohttps://www.cnnbrasil.com.br/politica/entenda-por-que-os-eua-querem-que-pcc-seja-classificado-como-terrorista/
[3] Como o fentanil se tornou a principal justificativa para as tarifas de Trump https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2025/02/05/como-o-fentanil-se-tornou-a-principal-justificativa-para-as-tarifas-de-trump.ghtml
[4] Como PCC usa a Faria Lima para lucrar bilhões, segundo investigações da Receita e a PF. Leandro Prazeres.
BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3r4e3g87e2o
[5] Dados do INFOPEN (2023) indicam que cerca de 25% das pessoas privadas de liberdade no país cumprem pena por delitos relacionados à Lei de Drogas, com predominância de pessoas negras e pardas, jovens, baixa escolaridade e de origem humilde.
*Agradeço à Leticia Dáquer por ter dado aquele tapa mágico na revisão da escrita.






