Lugar de maconha é na universidade

Parcerias entre associações e universidades estão revolucionando a pesquisa com cannabis no Brasil
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A cannabis deixou de ser apenas um tema polêmico e passou a ocupar, com cada vez mais força, os corredores das universidades brasileiras. O que antes era marginalizado hoje transformou-se em objeto de estudo sério, rigoroso e comprometido com a saúde pública graças às parcerias entre associações de pacientes e universidades públicas, que impulsionam uma revolução na pesquisa científica com cannabis no Brasil.

No cenário nacional, o acesso legal à cannabis para fins medicinais ainda é restrito e dependente de tramitação burocrática/judicial. Apesar de a Anvisa permitir a venda de derivados em farmácias, os preços são elevados e inacessíveis para grande parte da população. Existe também uma limitação na composição dos produtos com restrição especialmente do THC em produtos vendidos em farmácia.

É aí que surgem as associações de pacientes. Organizações civis sem fins lucrativos, criadas para produzir e fornecer remédios derivados de cannabis de forma segura, solidária e acessível. Essas associações enfrentam grandes desafios: nenhum órgão oficial do governo federal, seja o Ministério da Saúde, Ministério da Agricultura, a Anvisa ou a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas apoia ou regula diretamente as atividades associativistas.

Para operar dentro da legalidade, cada entidade precisa ingressar na Justiça e obter decisões judiciais individuais autorizando o cultivo, a produção e o fornecimento de produtos derivados de cannabis para os seus associados devidamente cadastrados. Esse andamento jurídico envolve batalhas políticas e sociais, em processos longos e árduos.

Além disso, essas organizações sofrem perseguições públicas frequentes: fiscalizações, notificações, apreensões e, em alguns casos, processos criminais. Mesmo nesse contexto, elas permanecem firmes, sustentadas pelo apoio de médicos, pacientes, cultivadores, acolhedores, farmacêuticos, pesquisadores e familiares que reconhecem a relevância de seu trabalho.

Estudos e impacto das parcerias científicas

Apesar das adversidades, as associações têm impulsionado uma série de estudos em colaboração com universidades públicas de todo o país. Essas parcerias estão criando um corpo científico robusto sobre cannabis, que vai desde o cultivo até os ensaios clínicos.

AbraRio + UFRRJ

A parceria entre a AbraRio e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) firmou um Acordo de Cooperação Técnica de cinco anos, dedicado ao desenvolvimento de estudos desde o cultivo até a padronização de extratos de cannabis.

A pesquisa começa pelo básico, focando na seleção genética, controle fitossanitário e testes fenotípicos de clones, etapas fundamentais para garantir eficácia, estabilidade e qualidade terapêutica. Mas posteriormente a parceria prevê técnicas de propagação, fertilidade e adubação, protocolos de cultivo, colheita, pós colheita, armazenamento, boas práticas agrícolas e de coleta, métodos extrativos e preparo de formulações.

Flor da Vida + Unesp

A associação Flor da Vida e a Unesp Araraquara organizaram o COTECANN, congresso sobre uso terapêutico da cannabis, com mesas sobre extração, sistema endocanabinóide e controle de qualidade. Os pesquisadores vêm conduzindo estudos analíticos com suporte institucional, buscando padronizar técnicas e parâmetros de qualidade em parceria com a associação Flor da Vida e buscando respaldo da ANVISA para essas pesquisas.

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Mesa de debate durante o COTECANN, organizado na Unesp Araraquara. | Foto: Reprodução Instagram @cotecann.unesp

ABRACE + UFPB + UNESP

Um estudo liderado pela equipe da professora Josiane Cruz (UFPB), em parceria com a ABRACE e a UNESP, analisou o uso de óleo rico em CBD no tratamento de hipertensão arterial em modelos animais. A pesquisa demonstrou redução significativa da pressão arterial e melhora na função vascular. O próximo passo da pesquisa é preparar os ensaios clínicos com humanos. 

ABECMed + Unicamp

A Unicamp realiza pesquisa que avalia amostras de óleos e extratos de cannabis produzidos por associações de pacientes e cultivadores autorizados judicialmente. O estudo, conduzido pelo Laboratório de Toxicologia Analítica (CIATox) da Faculdade de Ciências Médicas, analisa o perfil de canabinoides, terpenos, solventes residuais, micotoxinas e agrotóxicos. É um passo determinante para garantir segurança e eficácia dos produtos usados por pacientes.

A ABECMed (Associação Brasileira de Estudos Canábicos) fez uma parceria com a Unicamp (CIATox e LaFateCS) e a UFABC. Dentro desse acordo, a ABECMed fornece amostras legais e controladas de óleos e flores para os laboratórios universitários, permitindo análises rigorosas e qualificadas. O grupo de pesquisadores desenvolve testes que envolvem estabilidade, biodisponibilidade e segurança, integrando inovação farmacêutica com os padrões laboratoriais.

Outras colaborações relevantes

Além dessas, outras associações mantêm acordos de cooperação com universidades que ajudam a formar profissionais, desenvolver protocolos e estabelecer padrões de qualidade:

  • APEPI + UFPB/UNESP: estudos sobre uso de canabidiol em doenças cardiovasculares.
  • ABRACAMED + UFSJ: padronização do óleo distribuído a pacientes.
  • ABRAPANGO + UnB: colaboração científica e extensão universitária.
  • SouCannabis + Universidade Estadual de Goiás
  • Flor da Vida + Unesp Araraquara (curso de farmácia)
  • Flor da Vida + Universidade Estadual de Montes Claros
  • APEPI + Fiocruz: avaliação de eficácia do CBD em crianças com epilepsia.

Essas iniciativas envolvem médicos, farmacologistas, biólogos, químicos e pesquisadores de diversas áreas, formando um ecossistema de pesquisa genuinamente brasileiro sobre o uso medicinal da cannabis sativa.

Um avanço que vai além dos laboratórios

Essas parcerias demonstram que a ciência brasileira está viva, engajada e sensível às demandas sociais. E o que torna esse movimento ainda mais potente é o fato de ele nascer de baixo para cima: das associações, das famílias, dos pacientes e dos ativistas que, historicamente, lutam para acessar a planta com segurança e dignidade.

As universidades, ao abrirem suas portas para essa agenda, cumprem seu papel de produzir conhecimento alinhado com a realidade do país. Já as associações, ao fornecer insumos e organizar suas cadeias de produção com rigor técnico, garantem que os estudos possam ser realizados com qualidade e relevância.

Trata-se de uma mudança de paradigma. A maconha, que por séculos foi excluída dos espaços científicos brasileiros, agora se consolida como objeto de estudo legítimo, necessário e urgente. E quando ciência, cuidado e mobilização social caminham juntos, quem ganha é toda a sociedade.

Doutor PV

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