A imagem do atleta que fuma um baseado antes do treino ou usa óleo de CBD após uma maratona não causa mais o mesmo espanto de alguns anos atrás. A legalização da cannabis em diferentes partes do mundo e o avanço das pesquisas científicas abriram espaço para um novo debate: afinal, a planta pode influenciar o desempenho esportivo?
O tema, que há pouco tempo parecia mera curiosidade de nicho, tornou-se um terreno de disputas conceituais: entre o potencial terapêutico, o risco fisiológico e as complexas regras do antidoping internacional. O interesse é compreensível. Em um universo onde milissegundos e gramas de força definem campeões, qualquer substância que prometa auxiliar o corpo, seja na resistência, na recuperação ou na concentração, ganha atenção imediata.
Mas, quando se trata da cannabis, a resposta não é simples. Entre o entusiasmo dos usuários e a prudência dos cientistas, o que emerge é um campo cinzento, no qual o prazer, a dor e o desempenho convivem sob a mesma nuvem de fumaça.
Desenvolvimento
Do ponto de vista fisiológico, a cannabis não é o que os cientistas chamam de substância ergogênica, isto é, capaz de melhorar diretamente o desempenho físico. A maioria dos estudos disponíveis sugere o contrário: que o uso de THC, principal composto psicoativo da planta, tende a provocar um leve prejuízo no rendimento.
Pesquisas conduzidas com ciclistas e corredores, por exemplo, apontam para aumento da frequência cardíaca e maior percepção de esforço durante atividades intensas. O corpo parece trabalhar mais para fazer o mesmo. Em outras palavras, o atleta sente que está se superando, mas o cronômetro e o medidor de potência contam outra história.
Há, contudo, uma dimensão subjetiva que desafia a objetividade dos números. Muitos usuários relatam que a cannabis os ajuda a “entrar no fluxo”, a conectar-se melhor com o corpo e a mente durante o treino. O fenômeno é intrigante: mesmo quando o rendimento físico não melhora, ou até piora ligeiramente, o prazer associado ao exercício aumenta.
Uma pesquisa da Universidade do Colorado, publicada em 2024, mostrou que praticantes que consumiram cannabis antes do treino relataram humor mais positivo e sensação de diversão ampliada, embora tenham considerado o esforço mais intenso. Trata-se de uma contradição reveladora: a substância não torna o atleta mais forte, mas pode torná-lo mais disposto a treinar.
Na esfera da recuperação, o cenário é menos polêmico. O canabidiol (CBD), um dos principais compostos não psicoativos da planta, tem sido cada vez mais estudado por seu potencial anti-inflamatório e ansiolítico. Em levantamentos recentes, a maioria dos atletas que consome produtos com CBD afirma sentir melhora no sono, na dor e na disposição pós-exercício.
Ainda assim, as evidências clínicas continuam frágeis. Falta padronização de doses, controle de pureza e, sobretudo, estudos robustos com grupos grandes de atletas. É possível que parte desses efeitos esteja ligada ao placebo, o poder da crença de que algo fará bem. E, no caso da cannabis, essa crença tem sido combustível potente.
A questão, no entanto, não se resume à fisiologia. O uso de cannabis no esporte também toca dimensões culturais e éticas. Desde 2004, a Agência Mundial Antidoping (WADA) mantém o THC na lista de substâncias proibidas acima de 180ng/ml durante competições, sob o argumento de que ele pode comprometer o julgamento, a coordenação motora e a segurança do atleta e de seus adversários.
O CBD, por sua vez, foi liberado, mas com uma ressalva importante: muitos produtos vendidos como “CBD puro” contêm traços de THC suficientes para gerar resultado positivo em testes laboratoriais.

Essa fronteira regulatória cria dilemas reais. Em 2021, a velocista americana Sha’Carri Richardson perdeu o direito de disputar as Olimpíadas de Tóquio após testar positivo para cannabis, mesmo tendo usado a substância em um momento de luto pessoal, fora de competição.
O episódio reacendeu o debate sobre a seletividade moral das regras do antidoping: o álcool e a cafeína, ambas com efeitos psicoativos, permanecem fora da lista, enquanto a cannabis, associada historicamente à criminalização e ao estigma racial, continua punida com rigor.
No Brasil, o tema ganha contornos ainda mais complexos. O uso medicinal de derivados de cannabis já é autorizado pela Anvisa desde 2015, mas o acesso é limitado e desigual. Poucos atletas conseguem bancar os custos dos produtos importados ou se arriscar a testar positivos por uso terapêutico. O país vive, portanto, um paradoxo: a planta avança no campo médico e econômico, mas continua cercada de tabus no esporte e na sociedade.
Ao mesmo tempo, cresce uma nova geração de atletas que falam abertamente sobre o uso da cannabis para aliviar dores, tratar ansiedade ou lidar com o estresse competitivo. Alguns o fazem como forma de resistência, buscando normalizar uma prática que há décadas foi associada à marginalidade. Outros o fazem como estratégia de bem-estar, sem pretensão de melhorar o desempenho, mas de viver melhor.
Reflexão final
A relação entre cannabis e performance esportiva está longe de oferecer respostas definitivas. O que existe, até agora, são indícios fragmentados e muitas narrativas pessoais. A ciência mostra que a planta não aumenta a força, nem a velocidade, e pode, em certos contextos, atrapalhar. Por outro lado, há sinais de que pode favorecer o relaxamento, o sono e o prazer em treinar. Talvez, nesse equilíbrio entre corpo e mente, resida seu maior potencial.
No esporte de alto rendimento, onde cada decisão é medida em milésimos, o uso de cannabis ainda é um risco: fisiológico, regulatório e de reputação. Mas, no esporte como expressão de saúde e prazer, o exercício cotidiano, o treino recreativo, a corrida ao pôr do sol, talvez haja espaço para compreender a cannabis não como um atalho para a vitória, mas como um recurso de cuidado e reconexão.
A pergunta não é apenas se a planta melhora o desempenho, mas que tipo de desempenho buscamos: o do corpo que vence, ou o do corpo que se conhece.







