Intersecção: Onde o uso da terra, a justiça climática e as políticas de drogas se encontram? 

Revista Platô Edição Especial Intersecção completa tour de lançamentos em todas as regiões do Brasil e promove um debate mais que urgente
platô intersecção

A leitura do periódico convida a um mergulho profundo em um Brasil amplamente comentado, mas raramente exposto em toda a complexidade de suas fragilidades. É um material muito rico em dados científicos e análises de territórios marcados pelo proibicionismo e os efeitos devastadores da guerra às drogas, como a violência, os aliciamentos, os crimes ambientais, a exploração da terra e de comunidades tradicionais, indígenas e racializadas.

Em sua 7ª Edição, a revista busca interseccionar a Justiça Climática, o Uso da Terra e as Políticas de Drogas a partir da cadeia produtiva das substâncias que surgem a partir de plantas, como a maconha e a cocaína. A publicação esmiúça temáticas fundamentais como:

  • a articulação entre as redes de crime organizado: do narcotráfico, aos crimes ambientais e megaprojetos legalizados;

  • a cadeia produtiva das drogas, partindo das substâncias que são produzidas a partir de plantas e têm o uso da terra como peça-chave para a manutenção desse mercado. É interessante observar como as narrativas sobre as grandes apreensões de drogas ou o combate ao tráfico, acaba excluindo toda uma cadeia de produção que surge muito antes do varejo ou transporte, um recorte constantemente retratado pela imprensa através de matérias sobre grandes apreensões esporádicas, e as operações policiais de combate ao crime e a venda de drogas, que acontece geralmente em territórios de favela e periféricos. Mas na realidade, o comércio de drogas é um negócio que movimenta vários outros de forma paralela, e possui um grande investimento de recursos financeiros e logísticos em torno dessa produção, onde o varejo e o transporte são apenas um pequeno braço de uma engrenagem criminosa complexa.

  • demonstra a potência econômica, organizacional e a renovação do portfólio dos crimes praticados pelas diversas facções e instituições (empresas) criminosas, que expandem suas atividades rapidamente, legais ou ilegais, em detrimento do bem-viver de povos indígenas, comunidades tradicionais e pessoas e territórios racializados.


Além disso, a leitura nos permite refletir sobre as várias amazônias que existem em um só Brasil. Esses territórios são extremamente diversos em suas características e subjetividades, mas enfrentam problemáticas parecidas, principalmente no que tange o impacto dos megaprojetos (como a usina hidrelétrica de Belo Monte), a expansão da rede de crimes ambientais, a violação dos direitos humanos, a violência, a questão das proximidades com as fronteiras e muitos outros pontos em comum que aparecem nos artigos sobre os territórios amazônicos. Racismo ambiental, a redução de danos sobre novas perspectivas e a resistência dos povos, coletivos e suas terras e costumes também se destacou no periódico.

A Platô Intersecção surge em um momento oportuno e estratégico, onde o Brasil se prepara para receber a COP 30 em novembro deste ano, em Belém do Pará, na Amazônia Paraense, terra de Dandara Rudsan, preta travesti de muita potência, ativista antiproibicionista, que assina o quarto artigo da publicação.

O crime organizado e suas conexões com outros tipos de violações socioambientais será um dos temas centrais da COP, mas será que haverá espaço para uma verdadeira discussão sobre uma nova política de drogas e o fim da proibição na Conferência? Por enquanto, o que sabemos é que, como bem afirma o editorial da revista: A emergência climática é real. A urgência de acabar com a guerra às drogas também.

A metodologia da 7ª edição da Platô: Construção coletiva, escuta ativa e cientificidade


A 7ª Edição da Platô conta com 17 artigos publicados por 28 autorxs. São elxs ativistas, jornalistas, pesquisadores, historiadores, neurocientistas, advogados, cientistas políticos, especialistas ambientais, de várias profissões e formações, profissionais e de vida, pessoas que nascem, vivem ou enxergam de perto as realidades retratadas nos textos.

São pessoas pretas, indígenas, periféricas, travestis, amazonenses, enfim, os marcadores interseccionais não estão apenas nos temas centrais, abordagens teóricas e metodológicas de construção da revista, mas na representatividade dos corpos que assinam os textos.

A construção da revista começou muito antes do seu lançamento online. Segundo a assessoria de imprensa do projeto em 2024 diversos encontros foram realizados para promover o diagnóstico apresentados no periódico sobre “os crimes socioambientais, a violência armada, as violações de direitos territoriais, o superencarceramento e a proibição das drogas, articulando com campos de luta pela terra, sociobioeconomias, adaptação climática, reparação, combate ao racismo e direitos humanos” (Intersecção, 2025).

No período de planejamento e construção o projeto Intersecção também passou por espaços importantes como a COP16 de Biodiversidade em Cali, na Colômbia, das duas edições da Comissão de Narcóticos da ONU em Viena, na Áustria, da Conferência Internacional de Redução de Danos em Bogotá, na Colômbia, onde Dandara Rudsan fez uma fala em um dos principais painéis do evento, o “Mudanças Sísmicas: Lideranças do Sul Global para a Paz e Justiça em Matéria de Drogas” representando a  Iniciativa Negra, RENFA e toda a delegação do Brasil, além de dois encontros em Brasília, onde reuniram mais de 40 entidades e movimentos sociais brasileiros “para qualificar o trabalho sobre as intersecções mencionadas e articular agendas políticas” (Intersecção, 2025).

Como mestranda em comunicação e pesquisadora desde 2023, muitas vezes me deparo com textos e artigos que apesar de muito ricos, não intencionam que o conteúdo seja acessível e compreensível para além dos pares e fora das bolhas acadêmicas. Me questiono constantemente sobre para quem e para que interessa a ciência se não for para circular para muito longe de onde ela é produzida? Expandindo o conhecimento, democratizando o acesso à pesquisa e à educação.


Os textos oferecem autonomia para os dois lados: enquanto os autores puderam usufruir da liberdade e oportunidade de utilizar uma linguagem autêntica, ter suas especificidades respeitadas e bem representadas, sem artificialização, demonstrando uma excelente articulação entre o saber científico e os conhecimentos tradicionais, e ter a liberdade de assinar como quisessem, seja por suas perspectivas pessoais ou representando seus coletivos, os leitores também saíram ganhando ao desfrutarem de uma publicação com rigor e validação científica, mas com uma linguagem clara, compreensível e acessível.

A Platô possui em seu DNA a aptidão da democratização da ciência e da educação sobre as drogas e a política, uma vez que se propõe a entregar “artigos com reflexões, pesquisas e análises científicas, mas não necessariamente na linguagem tradicional” (PBPD, 2017), evidenciando que o seu “objetivo é que a publicação circule por um público amplo e plural” (PBPD, 2017).

Quando pensamos na circulação dos resultados, e também no efeito real do que pesquisamos, qual o impacto disso além da constatação, ou repetindo o que eu, em 2023, recém-chegada no mundo da pesquisa e da pós-graduação, questionava ao meu orientador:

Como devolvemos as comunidades e principais grupos e territórios tocados pelas nossas pesquisas e resultados científicos, tudo o que temos feito?

No caso da Platô, que já ganhou muitos pontos com a valorização das vozes, autenticidade e acessibilidade da linguagem, também impressionou com os eventos de lançamento, que passou por vários lugares, levando os autores e organizadores do periódico, discutindo com a sociedade o que foi construído, apresentando resultados e dados, e ouvindo dessa mesma sociedade o que eles acham sobre tudo isso.

Nossos passos vêm de longe: por onde andou a Platô Intersecção?


A versão digital da revista foi lançada em abril e está disponível gratuitamente no site da PBPD. Mas, para dar aquele gostinho de leitura antiga, 1.000 edições foram impressas em um material gráfico lindo e de muito boa qualidade, para ler com aquele chazinho (o seu favorito) do lado. Essas edições impressas foram entregues uma por uma, por pessoas envolvidas na sua construção, aos que compareceram em um dos 7 encontros presenciais que levaram o debate promovido nos textos para serem discutidos com a comunidade.

O primeiro evento aconteceu na zona sul de São Paulo, no Bloco do Beco, em 23 e 24 de abril. Estavam presentes autoras de artigos na revista e ativistas ambientais e antiproibicionistas, a curadora dos textos, coordenadora e autora na edição, Rebeca Lerer, a fundadora e diretora da Iniciativa Negra, Nathália Oliveira, e outros especialistas como mediadores. A noite foi de debate, mas também de arte e muita música boa, algo que marcou todos os encontros de lançamento, que levaram a parte artística como um elemento importante.

Em maio, foi a vez de Brasília receber a Platô. O debate foi sediado no Hub Peregum e contou com a participação de representantes do Instituto Fogo Cruzado (Cecília Oliveira), das Mães de Maio (Débora Silva), da Juventude Indígena de RO (Ideval Rocha), da Rede Reforma (Érica Santos) e da Iniciativa Negra (Dudu Oliveira).

Em julho as coisas esquentaram com aquele Dendê da Bahia e a 7ª Edição da revista pousou em Salvador, no Só Shape, “um dos pontos de encontro mais maravilhosos do Rio Vermelho” (Iniciativa Negra, 2025). Dessa vez, a Rebeca mediou uma conversa entre o Dudu Ribeiro (que sou fã), Rute Fiuza (Mães de Maio), Aristênio Gomes (membro da organização Movimentos, que escreveu um artigo incrível sobre a “Favela ser uma planta” na revista, que me tocou muito na minha leitura, pois valorizo os conhecimentos curandeiros) e Ideval Rocha (Juventude Indígena de Rondônia).

Acontece que, antes desse lançamento aberto, o debate aconteceu lá em Ilha de Maré, em colaboração com o Quilombo Bananeiras, durante a Toxic Tour. Esse encontro na Ilha de Maré merece ser evidenciado porque conseguiu levar para a comunidade local a discussão, reforçando “como a intersecção entre às drogas e o racismo ambiental traz danos também à Ilha de Maré” (Iniciativa Negra, 2025). O evento também está relacionado ao que eu refletia anteriormente, sobre os impactos da nossa ciência, e onde ela chega ou deveria chegar.

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Revista Platô: Intersecção | Imagem: Divulgação/PBPD


Em agosto foi a nossa vez de comemorar e receber a Platô aqui no Rio de Janeiro, em dois encontros, um no centro do Rio, no coração da boemia carioca, a Lapa, e outro no Complexo da Maré. Na Lapa, o encontro aconteceu na quinta-feira, dia 28/8, no Jah Lapa.

A Rebeca Lerer, que já descrevi profissionalmente, para mim, é uma grande comunicadora e ativista, que me inspira de várias formas, a Daniela Dias, com quem tive o prazer de ter um bater papo antes do debate, que veio diretamente do Acre para a cidade maravilhosa, e me ajudou a lidar um pouco com o nervosismo durante a nossa troca que foi leve e divertida, cheia de reflexões, e a Dandara Rudsan, que também veio de longe para estar com a gente, uma pessoa que eu já era fã e acompanhava nas redes sociais, mas tive o prazer de conhecer pessoalmente e discutir sobre o seu artigo e vivência pessoal.

A Daniela representa o SOS Amazônia e fez um debate incrível, pessoalmente e na revista, sobre a problemática das fronteiras nos territórios amazonenses, a renovação do portfólio dos crimes na região e a questão do desmatamento, tudo isso relacionado a commodities como a grilagem, às drogas, armas, garimpo, madeira e gado.

Através da Dandara, ter contato com a realidade do Pará e a obscuridade que têm por trás dos megaprojetos foi muito marcante para mim durante a leitura. Assisti alguns documentários sobre a Usina de Belo Monte, uma história que eu não conhecia, e vi imagens chocantes das realidades que Dandara viu, viveu e relatou na revista e para nós durante o encontro do dia 28.

Um dos pontos da sua fala no lançamento do Jah Lapa, denuncia algo que não podemos deixar de ver, discutir e compartilhar com o máximo de pessoas possíveis (um pedido pessoal da própria Dandara) que é o:

novo caos que vai acontecer em Altamira na Volta Grande do Xingu, que se chama Mineradora Canadense Belo Sun, projeto Volta Grande do Xingu, no mesmo lugar que foi construída a hidrelétrica que tirou minha casa (Usina Hidrelétrica de Belo Monte), onde eles vão querer cavar por 37 anos para tirar 237 toneladas de ouro. Isso vai acontecer, já tem totens que estão no aeroporto de Altamira, é bizarro e está se concretizando por trás das cortinas. Eles não vão fazer nada agora por causa da COP, porque todos os olhos estão voltados para o Brasil, mas lá a gente já sabe que quando esse rolê acabar, eles vão vir com tudo para cima da gente de novo, isso precisa ser denunciado, isso precisa ser falado, isso precisa ser exposto”. (Dandara Rudsan, 2025)

É fundamental que nós, comunicadores, antiproibicionistas e ativistas, do sudeste e de todas as outras regiões do nosso país, utilizemos nossas vozes, ferramentas e tecnologias para denunciar o absurdo relatado por Dandara. Na internet, facilmente conseguimos encontrar informações sobre o projeto de Belo Sun e pesquisas que já antecipam seus resultados catastróficos para a população e natureza local.

Os povos amazônicos têm muita voz, são resistentes natos, mas é preciso que todos façamos parte dessa rede de denúncia para proteger uma das culturas e regiões ambientais mais importantes do nosso país, que ao mesmo tempo  também é tão fundamental para o bem-viver do mundo que é a Amazônia. 

O último encontro do Rio de Janeiro aconteceu no Complexo de Favelas da Maré, na zona norte, um dos territórios mais impactados pela guerra às drogas no estado. Algo interessante e sincrônico, é que após esse último encontro, passei a trabalhar no território da Maré, como assessora de imprensa do Observatório de Favelas.

Hoje, consigo ver um pouco mais de perto a dualidade de um território que ao mesmo tempo que é violentado pelo Estado, é riquíssimo em arte, cultura e diversidade. Na Maré, o encontro aconteceu na casa Movimentos e recebeu Dandara, Receba, Michel Marques (Conselheiro do CONAD 23/25) e Ricardo Fernandes (do quadro Sou Favela no RJTV) como mediador da conversa.

Nova fase: Reformar a política de drogas, Restaurar direitos e Recuperar a natureza


O mês de setembro foi aberto com uma novidade: A OCUPA COP 30, que irá acontecer entre os dias 23 deste mês e 23 de novembro, terá como destaque a exposição “Reformar a política de drogas – RESTAURAR direitos – Recuperar a natureza” desenvolvida através de uma parceria entre a Iniciativa Negra, a Coalizão Internacional para a Reforma da Política de Drogas e Justiça Ambiental e a Matilha Cultural, um espaço de cultura em São Paulo.

A curadoria das fotos da mostra é do projeto Vist Projects e integra a comemoração de 10 anos da Iniciativa Negra. Todo o evento será composto por debates, oficinas, mostra fílmica e eventos musicais. A estreia da exposição no dia 23 acontecerá junto com o “Festival Ocupação Iniciativa Negra 10 Anos” e terá roda de samba com Roberta Oliveira e show do rapper Dexter.

Referências


Karol Benício

maconhometro

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