Enquanto alguns alegam defender a liberdade de expressão como um princípio universal, na prática, há uma clara tentativa de interdição do debate público
Por Igor Wefer
A liberdade de expressão, pilar central da democracia, é frequentemente invocada como um direito inalienável e fundamental para a construção de uma sociedade plural. No entanto, essa mesma liberdade é utilizada de maneira contraditória no Brasil, especialmente por setores conservadores e reacionários da sociedade brasileira. Enquanto alguns alegam defendê-la como um princípio universal, na prática, há uma clara tentativa de interdição do debate público, particularmente em relação a questões progressistas como a legalização da maconha.
Este texto busca refletir e explorar, sem objetivo de esgotar o assunto, as contradições em torno da liberdade de expressão no contexto brasileiro, à medida que se observa uma recusa persistente em debater com seriedade o impacto da proibição das drogas e seus efeitos sobre o tema da legalização da maconha no Brasil.
Fundamentos doutrinários da liberdade de expressão
A liberdade de expressão, conforme defendida por filósofos como John Stuart Mill, é vista como essencial para a busca da verdade e o desenvolvimento da sociedade. Mill argumenta que a livre troca de ideias é a melhor forma de promover o progresso e a evolução das crenças e práticas sociais. Contudo, essa liberdade deve ser exercida no limite da responsabilidade, principalmente quando se considera o impacto que determinadas ideias podem ter sobre o bem-estar coletivo, estabelecendo a supremacia do interesse público.
Em um sistema democrático, a liberdade de expressão é fundamental para garantir a pluralidade de visões e permitir que as minorias sejam ouvidas. No entanto, no Brasil, com maior evidência nos últimos anos, essa liberdade de expressão, na realidade, está sendo restringida por uma estratégia clara de controle das narrativas dominantes, especialmente no que tange a questões relacionadas à maconha. A mídia e certos setores da política, religião e da economia promovem uma desinformação deliberada sobre os efeitos da legalização, distorcendo dados científicos e criando um ambiente hostil para a discussão honesta sobre o tema.
A contradição da defesa da liberdade de expressão e a interdição do debate
Enquanto a liberdade de expressão é amplamente defendida por figuras políticas conservadoras, ela é, ao mesmo tempo, usada para silenciar a discussão sobre temas como a legalização da maconha. Em vez de se permitir um debate público informado e fundamentado, os opositores à legalização buscam encerrar a conversa por meio de argumentos moralistas e baseados em desinformação.
Essa contradição se revela especialmente clara quando se observa a utilização de frases como “não podemos permitir que a maconha seja legalizada, pois isso comprometeria a saúde pública e a segurança das famílias”. Tais argumentos, além de desprovidos de base científica sólida, são usados para criar um bloqueio ao avanço de um debate que é, na verdade, uma questão de direitos humanos, saúde pública e justiça social. O que os conservadores parecem defender é uma liberdade de expressão irrestrita mediante a qual podem promover desinformação como estratégia “legítima” de desorientação do sistema democrático, o que contraria e desvirtua por completo a noção de liberdade de expressão.
Exemplos concretos ajudam a ilustrar essa contradição. Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil começou a julgar o Recurso Extraordinário 635659, que trata da despenalização do porte de drogas para consumo pessoal. Apesar de ser uma oportunidade histórica para avançar no tema, a cobertura midiática do caso foi enviesada, com setores conservadores promovendo pânico moral e distorcendo os impactos dessa possível decisão. Além disso, iniciativas legislativas como o Projeto de Lei 399/2015, que regula a produção de cannabis para fins medicinais, enfrentaram forte oposição baseada em desinformação, apesar de seu potencial para beneficiar milhares de pacientes.
Dois casos ilustram bem o impacto da proibição e a interdição do debate. O primeiro é o estado do Uruguai, que em 2013 implementou a legalização da maconha com resultados promissores na redução do mercado ilegal e no controle da qualidade do produto, reduzindo também o envolvimento de jovens no crime organizado. O segundo exemplo é o estado do Colorado, nos Estados Unidos, que desde 2014 vem registrando aumento na arrecadação fiscal e investimento em saúde e educação pública, mostrando que a legalização pode beneficiar amplamente a sociedade.
A desinformação como forma de controle
A desinformação, alimentada por campanhas moralistas, é uma ferramenta poderosa para a manutenção da interdição do debate sobre a maconha. Através da manipulação das informações, esses setores conservadores criam uma falsa percepção de que a legalização da maconha traria mais malefícios do que benefícios, apesar de evidências em outros países que demonstram o contrário. Esse é um exemplo clássico de como a liberdade de expressão é distorcida: ao invés de se promover um espaço democrático para que diferentes opiniões sejam ouvidas e debatidas, cria-se um ambiente de censura indireta, no qual apenas uma visão pode prevalecer.
Essa abordagem contraria o princípio democrático de que as decisões devem ser tomadas com base em um processo informativo aberto e plural, que permita que todas as vozes sejam ouvidas. A falta de um debate honesto sobre a legalização da maconha não é apenas uma questão de política pública; é uma questão que reflete as falhas de um sistema democrático que não consegue garantir a liberdade de expressão para todos.
O impacto da proibição na sociedade brasileira
Em decorrência disso, a interdição do debate sobre a maconha tem consequências profundamente deletérias no tecido social brasileiro. A criminalização do consumo e tráfico de drogas, incluindo a maconha, resultou em um sistema penal que sobrecarrega as classes mais pobres, especialmente as populações negras e periféricas, colocando-as ao centro do alvo do fuzil das polícias estaduais. Ao criminalizar, especialmente de maneira desigual, o Estado perpetua uma violência estrutural, mantendo essas populações marginalizadas e perpetuando um ciclo de desigualdade, violência, ódio e indignação.
A resistência ao debate racional e saneado sobre a legalização da maconha é, portanto, um reflexo não apenas da capacidade insuficiente dos conservadores e reacionários de realizarem um debate honesto acerca do tema, bem como de uma estratégia de manutenção do status quo, de promoção do caos desinformante e de desorientação social, mediante os quais as estruturas de poder continuam a controlar quem tem voz e quem é silenciado, reproduzindo ciclos históricos de marginalização e exclusão social. Ao negar a possibilidade de um debate sério sobre a maconha, as elites conservadoras e os paladinos do pânico moral garantem a continuidade de um sistema que favorece suas próprias agendas políticas e econômicas que beneficiam organizações criminosas, traficantes de drogas e segmentos estatais corrompidos, ao mesmo tempo em que ignora as necessidades e os direitos da maioria da população.
Conclusão
O debate sobre a legalização da maconha no Brasil é um reflexo das contradições da democracia brasileira, onde a liberdade de expressão é frequentemente usada para justificar a interdição de discussões importantes e progressistas. Ao invés de abrir espaço para uma conversa informada e livre sobre o tema, setores conservadores manipulam a opinião pública através da desinformação, mantendo um ambiente caótico onde apenas as ideias conservadoras têm espaço. A falta de um debate genuíno não só impede o avanço das políticas públicas mais eficazes, mas também compromete a própria liberdade de expressão, que deveria ser um dos pilares centrais de uma sociedade democrática.
No caso da legalização da maconha, setores conservadores justificam a interdição do diálogo público por meio de argumentos moralistas e desinformados, negligenciando os potenciais benefícios sociais, econômicos e de saúde pública que a regulamentação poderia proporcionar. Assim, essa questão transcende o mero debate sobre drogas e expõe as fragilidades de um sistema democrático que ainda luta para garantir um espaço igualitário e inclusivo de expressão e decisão.
Por fim, para que o Brasil possa avançar em questões sociais e de justiça, tal como o debate sobre a legalização da maconha visando definir, de forma madura, sua estrutura institucional, direitos e limites, é imperativo que a sociedade se recuse à superficialidade e ao pânico moral infundado inseridos em debates fundamentais para o interesse público, e abra espaço para uma discussão honesta e plural para que não apenas o tema da legalização da maconha seja visto sob o prisma da razão, bem como outros temas salutares de igual ou maior relevância sejam devidamente enfrentados pelo bem da democracia brasileira.
Referências:
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