Com muitas pessoas indignadas e outras ignorando, hoje já enxergamos como a proibição da maconha afeta negativamente diversos cenários da sociedade. Se queremos entender sobre a proibição, precisamos voltar um tanto nessa história, que desde sempre foi racista & classista.
Por Kyalene Mesquita e Isabela Gil
No ano de 1500 as caravelas portuguesas que invadiram o território brasileiro eram feitas de cânhamo; o tecido das velas era feito a partir das fibras retiradas da planta, pois acreditava-se que esse tecido era mais resistente que os tecidos provenientes do algodão. Hoje, esta crença da época já um é fato.
Nesse período — e durante um bom tempo — os europeus a utilizavam também como erva medicinal, graças a estudos do viajado Sir. William Brooke O’Shaughnessy, um médico que trouxe seus conhecimentos da Índia e tratou os sintomas da cólera e diversas outras doenças com a verdinha.
Erik Torquato: NA VOLTA A GENTE ̶C̶O̶M̶P̶R̶A̶ PLANTA?
Durante a história da humanidade a maconha sempre esteve presente, como muitas outras maravilhas naturais da Terra, mas sua criminalização é muito recente. Dos milhares de anos que a utilizamos das mais diferentes formas, apenas nos últimos 100 ela foi considerada ilegal.
Nem sempre as ervas medicinais utilizadas no Oriente Médio e na Europa foram convenientes, mas estudos comprovam a eficácia da Cannabis como planta medicinal há, no mínimo, 24 anos, quando em 1996, o estado da Califórnia (EUA) entrou na justiça com um pedido para descriminalização da “droga” em questão.
É de se questionar: por que a Cannabis foi proibida?
Para a sociedade, o erro da ganja foi se envolver com as classes mais baixas; a criminalização da erva está diretamente ligada com o racismo e a xenofobia.
Em 1910 o México iniciava uma guerra civil após anos de um regime totalitário com o ditador militar Porfirio Diaz. Essa revolução faria com que muitos mexicanos migrassem para os Estados Unidos levando com eles seus costumes e crenças. Uma das coisas populares entre os mexicanos era justamente o uso da Cannabis; na época, o México plantava e revendia maconha, enquanto os Estados Unidos plantavam tabaco. Já dava para fazer um Bem Bolado né? Só que não.
O governo americano passou a adotar medidas contra a entrada dos mexicanos no país e a disseminação de seus costumes. É óbvio que a xenofobia na América não começou com Trump. A tão conhecida “Marihuana/Marijuana” passou a ser chamada assim justamente para evidenciar a diferença entre os povos e fez valer o que os governantes chamavam de “droga das minorias”, dando a entender que era algo que apenas a população pobre ou imigrante usava. A partir de então as medidas ficaram mais complicadas e MUITO mais racistas.
Por volta de 1930 os Estados Unidos declararam Guerra às Drogas. O precursor dessa ideia foi Henry J. Anslinger que, juntamente com outros integrantes do Governo Nixon, criaram as leis antidrogas para promover um novo departamento do governo, o chamado Federal Bureal of Narcotics (FBN) — o que seria um equivalente ao nosso DENARC (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico). Anslinger deu várias declarações polêmicas, mas a que chama mais atenção virou slogan das operações na época: “Reefer makes darkies think they are as good as white men” — na tradução, “A maconha faz com que os pretos pensem que são tão bons quanto homens brancos”.
Diversas propagandas do governo estadunidense da época demonizavam a maconha; induziam a população a associar a Cannabis com violência e luxúria, mostrando à família tradicional que seus filhos corriam perigo consumindo qualquer tipo de cultura que diferisse da estadunidense. A partir de 1937, o Marijuana Tax Act punia qualquer um que portasse, vendesse ou utilizasse a Cannabis de qualquer maneira — inclusive a medicinal —, mudando o jeito com que o mundo todo enxergava a maconha.
Para entender essa história dos EUA sob uma perspectiva cultural também, vale assistir ao Documentário Americano “Baseados em Fatos Raciais – Jazz, Negros e Latinos na Guerra às Drogas” (Netflix).
TÁ, MAS E O BRASIL?
No Brasil as coisas aconteceram quase que simultaneamente com os Estados Unidos, já que estivemos quase sempre copiando os comportamentos deles. Entretanto, diferentemente de lá, o Brasil passou +300 anos num regime escravocrata que trouxe consequências até os dias atuais, acrescentando os problemas que a estratégia proibicionista poderia trazer.
Aqui, as pessoas que eram escravizadas, principalmente vindas de Angola, e também os povos nativos (indígenas) tinham o costume de consagrar a erva em rituais religiosos. Durante o imperialismo, os portugueses até incentivaram as plantações para consumo próprio, PORÉM, após a “abolição” em 1888, as tentativas de controle e segregação da cultura negra continuaram. Políticos, sociólogos e antropólogos europeus da época voltaram a atenção para barrar a disseminação dos costumes de negros e indígenas para a população branca.
Emílio Figueiredo: Minha opinião sobre o PL 399 até aqui
Com pequenas cidades se formando, os governantes portugueses impuseram uma fiscalização para a população negra que proibia não só o fumo como também as rodas de samba, a capoeira, o candomblé e outras tradições. Em suma, todo costume que não era europeu ou cristão foi proibido com penas que variavam de linchamento até enforcamento em praça pública. O preconceito contra a cultura nativa foi estabelecido a partir daí.
Com o passar dos anos e a evolução das cidades e comunidades, o preconceito e o discurso proibicionista também evoluíram, virando centro de discursos e propostas políticas. O Brasil teve seu primeiro decreto antidrogas em 1932, antes mesmo do Marijuana Tax Act de 1937, mas foi considerado como lei somente em 1944 durante a gestão de Getúlio Vargas.
Desde a sua criação, a Guerra às drogas e as leis proibicionistas não conseguiram efetivar uma diminuição significativa no número de usuários que, até hoje, cresce anualmente. Existem centenas de estudos, iniciados ainda no século passado, que comprovam a eficácia do uso medicinal da maconha e, mesmo assim, lideranças de países seguem no mesmo pensamento enviesado. Nunca existiu de fato um motivo válido para a proibição do uso da Cannabis medicinal ou recreacional, principalmente quando comparamos a legalização do uso de outras drogas recreacionais que possuem malefícios comprovados, como o álcool e o cigarro.
A BRISA PRINCIPAL
Enquanto pouco falamos sobre isso:
- o encarceramento em massa explode nos presídios brasileiros superlotados;
- os usuários ilegais usufruem de substâncias alteradas e de má qualidade;
- a Guerra as Drogas leva milhões de reais para o ralo ou para o bolso da milícia.
Vários países enriquecem com a legalização atualmente, inclusive estados dos EUA. Enquanto o Brasil se afundam no genocídio, enchendo as prisões com usuários categorizados como traficantes e desumanizando os ambientes de vida cotidiana nas comunidades periféricas, tidas como “principais áreas do tráfico”.
Quando nos comunicamos, queremos que a informação seja nossa defesa, seja você usuário ou não de maconha, é super necessário que entenda o início dessa história.
A construção de uma política antiproibicionista é urgente, debater a reparação aos atingidos pelo proibicionismo também.
PARA LER E ASSISTIR SOBRE
- Um livro para nunca se esquecer da “História da Maconha no Brasil” — JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA (2015).
- “Fumo de Negro”: Livro de LUISA SAAD sobre a Criminalização da Maconha no Pós-Abolição (2019, quentinho no mundo ainda).
- Documentário Brasileiro: “Cortina de Fumaça”, sobre a política de drogas vigente no Brasil, principalmente no estado do Rio de Janeiro (Youtube)
- “A 13ª Emenda”: Documentário sobre o encarceramento em massa do povo negro e latino, após o início da Guerra às Drogas e a ‘Abolição’ nos EUA. (Netflix)