Consensos têm se formado – e se desfeito, na mesma velocidade – quando o assunto é o PL 399/2015.
Por Erik Torquato
De primeira, fico satisfeito que cada vez mais o tema da maconha esteja sendo levado a sério, ainda que numa visão muito pequena. Muitos que desconheciam totalmente do assunto hoje ao menos sabem que maconha pode ser remédio. É consenso que isto é um avanço, também promovido pelas vias formais de poder. Mas ainda é pouco.
Se de início critiquei a iniciativa por não trazer tópicos importantes como liberdade de autocultivo e nenhum traço de reparação histórico-social (crítica que mantenho), hoje minha preocupação maior é outra. O cultivo associativo e o fornecimento de remédios pelo SUS via Farmácias Vivas têm sido as grandes promessas para aqueles que defendem uma política com impacto social positivo. Mas aí pergunto: qual a força real de estas propostas passarem? Quanto ao fornecimento pelo SUS, eu acredito que vá acontecer. Para quais cidadãos e a qual o custo para os cofres públicos é que é o grande mistério – e aí que mora os interesses não-ditos. É preciso lembrar que eventual distribuição gratuita de remédio (como tem sido prometido) nunca é realmente livre de custos. Corremos o risco de criarmos uma grande fonte de escoamento de capital público para mão de empresários lobistas que sabem muito bem que cobram demais por aquilo que pode ser plantado num quintal. Ser parceiro do SUS é sonho de toda empresa farmacêutica que quer lucrar com a dor do povo brasileiro. Feitas considerações quanto ao que talvez de mais progressista “passe”, agora foco naquilo que, para mim, tem sido uma promessa com grande risco de ser esvaziada: o cultivo associativo. Como o projeto está sendo apresentado como um resumo de convergências de forças políticas muito diferentes, com interesses próprios, temo que no decorrer do trâmite legislativo, na medida que o processo avançar, aqueles que detiverem menor capital político poderão ser perdidos no caminho. E aí pergunto: qual a real força política do cultivo associativo que nem sequer com aliados conseguiu garantir um texto que contemplasse suas reais necessidades? E aqui chamo a atenção para associações de pequeno e médio porte, não estou tratando daquelas que facilmente se adequarão se o único caminho for a via empresarial. É preciso lembrar que o projeto é fraco e muito estreito, com poucas margens para manobras a não ser para perdas. A própria previsão de cultivo associativo está contemplada praticamente em apenas um artigo que, com um sopro, pode ser retirado do projeto e dar a sensação de que nunca esteve lá. Pela falta de fôlego desde a largada é que considero temerário que grupos progressistas estejam tão satisfeitos com tão pouco e se sintam com medo de lutar por interferências no processo legislativo em curso. Muitas são as cartas de apoio crítico publicadas com idealizações do que se gostaria de ver no projeto, mas poucos são os que realmente consideram interessante buscar parlamentares para propor o embate no Congresso via emendas e destaques. Vale lembrar que, no momento, há quem esteja mais empenhado no duelo de batismo da lei do que em lutar pelo que a própria ainda poderia contemplar se emendada por aliados. Infelizmente sei que pareço muito pessimista, mas é pela experiência de saber que um processo de aprovação de lei, ainda que tramite em regime de urgência, costuma sofrer severas desidratações. Se o movimento deste lado se cala quanto às emendas aditivas ou modificativas, então que se prepare para as emendas supressivas que acredito que virão contra aquilo que é socialmente mais sensível. As ofensivas ao projeto já começaram dos lugares mais previsíveis possíveis: bancada da bala e bancada da bíblia. Uma por supostamente temer o avanço do narconegócio no Brasil, outro por supostamente temer pelas famílias que se verão cercadas de drogas se a maconha puder ser plantada em solo nacional (como se já não fosse). Consenso é que a narrativa proibicionista diz que o cultivo nacional traz riscos para o país. E adivinha quem mais se encontra neste fogo cruzado de conservadorismo, neste momento? As associações que querem cultivar o próprio remédio, é claro. Sob o argumento de incapacidade de manter rígidos controles sobre produção e distribuição, quem mais lucra com o medo é a bancada do boi. E é certo que o agro nunca perde. Também é certo que não faltará dinheiro para atender ao extenso rol de exigências para cultivo para fins medicinal ou industrial. Se é assim, pra que dividiriam seus possíveis ganhos de deste mercado com aqueles que lutam uma sociedade mais justa e solidária? Já há ruralistas entusiasmados nas futuras propagandas que poderão ser feitas sobre a “cannabis da Amazônia”! Do mais, é preciso lembrar da já declarada ofensiva do atual presidente e seus mais fiéis asseclas. Daquilo que sobrar da iniciativa legislativa, ainda virão os vetos do Executivo. E aí, caso o cultivo associativo passe e seja vetado, será que eventual consenso com Rodrigo Maia para propositura do projeto em regime de urgência contemplará a derrubada dos vetos em favor das associações ou tudo já estará resolvido quando devidamente contemplados o agro e as indústrias? São por estas muitas questões que é que me incomodo com o silêncio dos bons nesse momento que, comprando um discurso utilitarista de que qualquer avanço é melhor que nenhum, podem estar induzindo tantos a um grande sentimento de euforia e gratidão por um projeto tão fraco, estreito e limitado. Nesse ponto, infelizmente também preciso alertar que a tramitação em regime de urgência não nos é interessante. Já foram feitas algumas audiências públicas, mas ainda é preciso amadurecer o debate e fazer com que aqueles que têm pressa e capital político para a aprovação entendam que não seremos utilizados como massa de manobra para ao final ficarmos na esperança de que nossa hora vai chegar. Do contrário, tantos que já se sentem contemplados hoje possivelmente ficarão só na promessa de que “na volta a gente planta”.